domingo, 29 de novembro de 2009

Um Pouco da história da ineficácia do sacrossanto Código Florestal brasileiro

Por Ciro Fernando Assis Siqueira


O Código Florestal (doravante apenas CF) vigente foi assinado em 1965 pelo Gal. Castelo Branco durante a ditadura militar, entretanto, o CF de 1965 é uma reformulação de um Código Florestal que já existia desde 1935, do governo de Vargas. O Código Florestal de Vargas não foi, como se pode pensar, um código de leis ambientais. Pode-se acusar Vargas de muitas coisas, mas é necessário torcer a história para classificá-lo como um homem preocupado com o meio ambiente. O Código Florestal de Vargas era parte de uma estratégia de estatização dos recursos naturais perfeitamente compreensível no contexto político e econômico da primeira metade dos anos 30. Dessa estratégia também fizeram parte a própria constituição de 1934, o Código de Águas e o Código de Minas ambos de 1935.



O primeiro CF, o de 1935, foi pensado partindo-se da premissa de que o Estado à época - estamos falando dos anos 1920 e 1930 quando vivíamos o “boom” da economia cafeeira - não tinha condições de controlar a passagem de terras do domínio público para o domínio privado. Daí a necessidade de regular (preservar) as florestas dentro das áreas privadas uma vez que o Estado nem sequer sabia quais eram e onde estavam suas próprias áreas. Mas o CF de 1934 previa, sob certas circunstâncias, uma indenização paga pelo Estado àqueles proprietários que, de acordo com o CF, ficariam impossibilitados de "usar" alguma parte de suas áreas. Ou seja, o CF de 1934 manteve o ônus da preservação florestal nas mãos do Estado.

O CF de 1934 nunca saiu do papel. Algumas pessoas preocupadas com isso iniciaram um esforço para reformulá-lo ainda durante o Estado Novo de Vargas. Essas discussões caminharam infrutiferamente durante os anos 1930, 1940 e 1950. Jânio Quadros, presidente eleito democraticamente, instituiu um grupo de trabalho encarregado de reformular o Código. Esse grupo foi presidido pelo jurista Osny Duarte Pereira, comunista convicto. Lembremos mais uma vez que estamos falando do pós-guerra, quando a guerra fria estava no auge, o comunismo aparecia como uma opção política considerável. Osny foi cotado para compor o gabinete parlamentar do Jango. Sem preconceitos esquerdistas ou direitistas, a ideologia comunista de Osny permeou os debates da reformulação do Código Florestal donde se pode inferir que não houve problema nenhum por parte dele em transferir o ônus da preservação ambiental do Estado para os "latifundiários capitalistas" através da lei ambiental que fora encarregado de reformular.



Por alguma razão que eu mesmo não compreendo (essa é uma das lacunas na minha pesquisa) a ditadura militar endossou o trabalho do grupo de reformulação do CF. A lei batia de frente com os interesses desenvolvimentistas e integracionistas dos militares, sobretudo em relação à Amazônia. A mim parece que o Castelo Branco ratificou o CF de 1965 aprovado no Congresso como um tipo de "cala-boca". Como se a ditadura quisesse dar ao legislativo a impressão de utilidade institucional aprovando uma lei que a própria ditadura não tinha a menor intenção de fazer cumprir. Lembremos novamente que o Congresso Nacional só foi fechado definitivamente em 1968 com o AI-5, também assinado por Castelo Branco. Em 1965 o congresso ainda funcionava de forma precária (não sei, isso é só conjectura). O fato é que o CF de 1965 transferiu o ônus da preservação ambiental do Estado para o poder privado. Esse é o ponto chave para se discutir o CF: o ônus da conservação de florestas. A quem cabe esse ônus? A discussão sobre percentagens é árida.

”Ninguém” obedece ao Código Florestal. Como “ninguém” obedece, os efeitos econômicos da lei não aparecem. Se todos obedecessem a lei nós não teríamos agricultura na Amazônia e a agricultura fora da Amazônia seria muito menos competitiva no cenário internacional (onde a agricultura recebe subsídios e não ônus). Essa queda de competitividade da agricultura resultaria em perdas sociais enormes em termos de perda de emprego, renda, divisas de exportação, efeitos negativos no PIB, efeitos negativos a montante e a jusante na cadeia do agronegócio, etc. Ninguém vê isso, porque a ineficácia da lei camufla o seu custo social. Como ninguém obedece a lei seus benefícios não aparecem e não aparecem, também, os seus custos sociais. Na medida em que o Estado encontrar formas de impor a lei ao setor privado esses custos começarão a aparecer e começarão a ser sentidos, num primeiro momento pelos "latifundiários capitalistas", mas num segundo momento toda a sociedade sofrerá os efeitos desse.


Reparem que o que motivou o CF de 1934 foi à incapacidade do Estado de gerir suas áreas públicas. Naquela época, salvo engano, não existia nem uma única unidade de conservação no Brasil. Hoje temos a lei do SNUC, a Lei da Mata Atlântica, a Lei de Gestão de Florestas Públicas, a Lei do Georreferenciamento de Imóveis Rurais. O INCRA não titula áreas maiores do que 100 ha. A capacidade do Estado de gerir as terras públicas hoje é absolutamente diferente da que foi nos anos 1930. Gerir florestas por regulação do uso das áreas dentro das propriedades privadas é totalmente obsoleto. Não faz mais sentido algum. Além de anacrônico é ineficaz, não funciona. Quanto da Mata Atlântica perdemos de 1934 até hoje? Quanto do Cerrado perdemos? Quanto da Amazônia perdemos enquanto já havia um Código Florestal? Como pode uma lei que nunca protegeu nada ser uma boa lei? Quanto ainda há de perderemos até que se tenha a sensatez de refletir sobre velhas certezas absolutas, sobre velhas convicções?


Ciro Fernando Assis Siqueira é Engenheiro Agrônomo Geomensor, pós graduado em Gestão Econômica do Meio Ambiente (Mestrado) e Geoprocessamento.

Fonte: Código Florestal Brasileiro

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Nobel de economia reconhece estudos socioambientais


Por Paula Scheidt

O prêmio foi entregue para a cientista social Elinor Ostrom em um claro sinal de que a ciência econômica precisa integrar outros conhecimentos e considerar a sabedoria local para lidar com desafios como o gerenciamento de recursos naturais

Por que algumas culturas identificam e se adaptam quando encaram limites ambientais enquanto outras entram em colapso? Quais os atributos para uma sustentabilidade de sucesso a longo prazo?

Estas são algumas perguntas que a economista política e cientista social Elinor Ostrom vêm se fazendo há alguns anos e foi justamente seus estudos sobre o uso cooperativo de bens comuns que a fez ganhar o prêmio Nobel de economia, dividido com o economista Oliver Williamson, que também estuda estruturas de governança para resolver conflitos de interesse.

Segundo a Academia Real de Ciências da Suécia, responsável pela entrega do Nobel, a pesquisadora norte-americana foi escolhida “por suas análises da economia da governança, especialmente dos comuns”. “Elinor demonstrou como as propriedades comuns podem ser gerenciada com sucesso por associações de usuários”, descreveram no anúncio da premiação.

Professora e pesquisadora da Universidade do Arizona (EUA), ela foi a primeira mulher a receber o Nobel de Economia. Elinor desafiou a teoria tradicional de que as propriedades comuns, como os recursos naturais, são mal administradas e deveriam ser ou reguladas por autoridades centrais ou privatizadas.

Em um dos seus mais recentes trabalhos publicado na revista Science em julho, ela cita estudos de diversos campos de conhecimento que chegaram à conclusão de que algumas políticas governamentais aceleram a destruição dos recursos, enquanto que, por outro lado, alguns usuários de recursos investem tempo e energia para alcançar a sustentabilidade.

Com base em diversos estudos sobre como pessoas comuns e funcionários públicos tentam solucionar problemas difíceis relacionados ao gerenciamento de recursos naturais, como estoques pesqueiros, pastagens, madeira e água, Elinor observou que quando trabalham em conjunto, eles desenvolvem mecanismos sofisticados para tomar as decisões e lidar com conflitos de interesse, construindo uma rede de confiança e respeito, o que os levam as soluções.

"Que um funcionário tenha um PHD não significa necessariamente que ele saiba mais que as pessoas que vivem de um recurso. (...) Há muito conhecimento local que temos que respeitar", afirmou nesta segunda-feira (12).

Elinor percebeu que as mudanças vinham quando os benefícios da sustentabilidade eram altos o suficiente para compensar os custos em atingi-la. Evitar o colapso ambiental, por exemplo, normalmente significa enfrentar perdas no presente, como suspender a pesca por alguns anos para restabelecer os estoques, em nome de um interesse comum a longo prazo.

A cientista, que é diretora fundadora do Centro de Estudos de Diversidade Institucional na Universidade do Arizona, identificou as 10 maiores variáveis que influenciam um grupo a se organizar para fazer sacrifícios agora e se tornar sustentável ou não: tamanho do sistema de recursos, produtividade dos recursos, previsibilidade da dinâmica do sistema, mobilidade das unidades de recursos, número de usuários, liderança e empreendedorismo, normas e capital social, conhecimento de sistemas sócio-ecológicos e modelos mentais e a importância do recurso.

Múltiplos conhecimentos

Elinor chamou a atenção também para a desconexão nas bases científicas usadas por diferentes campos de conhecimento, desde a biologia até a economia, quando estudam grande problemas, como a potencial perda de recursos hídricos e florestais. Sem um quadro comum de conceitos e linguagens para descrever e explicar cada descoberta sobre complexos sistemas sócio-ecológicos, o conhecimento isolado não irá se acumular e reverter em avanços.

Para a cientista, o interesse por esta visão de integração de conhecimentos está crescendo e uma rede internacional está se formando, com diversos grupos colaborando para desenvolver mais e aplicar este quadro geral de análise da sustentabilidade em sistemas sócio-ecológicos.

“Elinor não é apenas uma cientista brilhante e inovadora que, combinando de uma forma original abordagens na economia, antropologia e ciência política, abriu muitas novas perspectivas para estudos em instituições e políticas, mas ela também é uma cientista extremamente modesta e generosa, que se esforçou muito para compartilhar suas ideias com aqueles que as mais precisam, nos Estados Unidos e no mundo”, disse seu colega Sander van der Leeuw, que é diretor da Escola de Evolução Humana e Mudança Social da Universidade do Arizona.

Para Leeuw, ela é um exemplo do tipo de cientista que mais precisamos hoje: transdiciplinar e totalmente comprometida com as grandes questões que as sociedades precisam lidar hoje.

Fonte: CarbonoBrasil

Entrevista com Hobsbawm: ‘Crise ambiental é desafio central que enfrentamos no século XXI'


“Vivemos meio século de um crescimento exponencial da população global, e os impactos da tecnologia e do crescimento econômico no ambiente planetário estão colocando em risco o futuro da humanidade, assim como ela existe hoje. Este é o desafio central que enfrentamos no século 21. Vamos ter que abandonar a velha crença — imposta não apenas pelos capitalistas — em um futuro de crescimento econômico ilimitado na base da exaustão dos recursos do planeta”. A afirmação é do historiador Eric Hosbsbawm em entrevista exclusiva à jornalista Verena Glass e publicada na Revista Sem Terra, maio/junho 2009.

O planeta vive hoje uma crise que abalou as estruturas do capitalismo mundial, atinge indiscriminadamente atores em nada responsáveis pela sua eclosão, e que talvez seja um dos mais importantes “feitos” da moderna globalização. Na sua avaliação, quais foram os fatores e mecanismos que levaram a esta situação?

Nos últimos quarenta anos, a globalização, viabilizada pela extraordinária revolução nos transportes e, sobretudo, nas comunicações, esteve combinada com a hegemonia de políticas de Estado neoliberais, favorecendo um mercado global irrestrito para o capital em busca de lucros. No setor financeiro, isto ocorreu de forma absoluta, o que explica porque a crise do desenvolvimento capitalista ocorreu ali. Apesar do fato de que o capitalismo sempre — e por natureza — opera por meio de uma sucessão de expansões geradoras de crises, isto criou uma crise maior e potencialmente ameaçadora para o sistema, comparável à Grande Depressão que se seguiu a 1929, mesmo que seja cedo para avaliarmos todo o seu impacto. Um problema maior tem sido que a tendência de declínio das margens de lucro, típico do capitalismo, tem sido particularmente dramática porque os operadores financeiros, acostumados a enormes ganhos com investimentos especulativos em épocas de crescimento econômico, têm buscado mantê-los a níveis insustentáveis, atirando-se em investimentos inseguros e de alto risco, a exemplo dos financiamentos imobiliários “subprime” nos EUA. Uma enorme dívida, pelo menos quarenta vezes maior do que a sua base econômica atual foi assim criada, e o destino disso era mesmo o colapso.

Como resposta à crise econômica, governos e instituições financeiras estão concentrados em salvar os sistemas bancário e financeiro, opção que tem sido considerada uma tentativa de cura do próprio vetor causador do mal. No que deve resultar este movimento?


Um sistema de crédito operante é essencial para qualquer país desenvolvido, e a crise atual demonstra que isso não é possível se o sistema bancário deixa de funcionar. Nesse sentido, as medidas nacionais para restaurá-lo são necessárias. Mas o que é preciso também é uma reestruturação do Estado por exemplo, através das nacionalizações, a “desfinanceirização” do sistema e a restauração de uma relação realista entre ativos e passivos econômicos. Isso não pode ser feito simplesmente combinando vastos subsídios para os bancos com uma regulação futura mais restrita. De toda forma, a depressão econômica não pode ser resolvida apenas via restauração do crédito. São essenciais medidas concretas para gerar emprego e renda para a população, de quem depende, em última instância, a prosperidade da economia global.



Antes de se agudizar o caos econômico, o mundo começou a sofrer uma sucessão de abalos sociais e ambientais, como a falta global de alimentos, as mudanças climáticas, a crise energética, as crises humanitárias decorrentes das guerras, entre outros. Como você avalia estes fatores na perspectiva do paradigma civilizatório e de desenvolvimento do capitalismo moderno?



Vivemos meio século de um crescimento exponencial da população global, e os impactos da tecnologia e do crescimento econômico no ambiente planetário estão colocando em risco o futuro da humanidade, assim como ela existe hoje. Este é o desafio central que enfrentamos no século 21. Vamos ter que abandonar a velha crença — imposta não apenas pelos capitalistas — em um futuro de crescimento econômico ilimitado na base da exaustão dos recursos do planeta. Isto significa que a fórmula da organização econômica mundial não pode ser determinada pelo capitalismo de mercado que, repito, é um sistema impulsionado pelo crescimento ilimitado. Como esta transição ocorrerá ainda não está claro, mas se não ocorrer, haverá uma catástrofe.

O capitalismo tem adquirido, cada vez mais, uma força hegemônica na agricultura com o crescimento do agronegócio. Muitos defendem que a Reforma Agrária não cabe mais na agenda mundial. Como vê este debate e a luta pela terra de movimentos sociais como o MST e a Via Campesina?



A produção agrícola necessária para alimentar os seis bilhões de seres humanos do planeta pode ser fornecida por uma pequena fração da população mundial, se compararmos com o que era no passado. Isso levou tanto a um declínio dramático das populações rurais desde 1950, quanto a uma vasta migração do campo para as cidades. Também levou a um crescente domínio da agricultura por parte não tanto do grande agronegócio, mas principalmente de empreendimentos capitalistas que hoje controlam o mercado desta produção. Da mesma forma, têm aumentado os conflitos entre agricultores e iniciativas empresariais na disputa pela terra para propósitos não agrícolas (indústrias, mineração, especulação imobiliária, transporte etc.), bem como pela sua posse e pela exploração dos recursos naturais. A Reforma Agrária sem duvida não é mais tão importante para a política como foi há 40 anos, pelo menos Insustentável: crescimento econômico e da população colocam em risco o futuro da amizade na América Latina, mas claramente permanece uma questão central em muitos outros países. Na minha opinião, a crise atual reforça a importância da luta de movimentos como o MST, que é mais social do que econômica. Em tempos de vacas gordas é muito mais fácil ganhar a vida na cidade. Em tempos de depressão, a terra, a propriedade familiar e a comunidade garantem a segurança social e a solidariedade que o capitalismo neoliberal de mercado tão claramente nega aos migrantes rurais desempregados.

Na virada do século, um novo movimento global de resistência social tomou corpo através do que ficou conhecido como altermundialismo. Surgiu o Fórum Social Mundial, e grandes manifestações contra a guerra e instituições multilaterais, como a OMC, o G8 e a ALCA, na América Latina, ganharam as ruas. Na sua avaliação, o que resultou destes movimentos? E hoje, como vê estas iniciativas?

O movimento global de resistência altermundialista merece o crédito de duas grandes conquistas: na política, ressuscitou a rejeição sistemática e a crítica ao capitalismo que os velhos partidos de esquerda deixaram atrofiar. Também foi pioneiro na criação de um modo de ação política global sem precedentes, que superou fronteiras nacionais nas manifestações de Seattle e nas que se seguiram. Grosso modo, logrou formular e mobilizar uma poderosa opinião pública que seriamente pôs em cheque a ordem mundial neoliberal, mesmo antes da implosão econômica. Seu programa propositivo, porém, tem sido menos efetivo, em função, talvez, do grande número de componentes ideologicamente e emocionalmente diversos dos movimentos, unificados apenas em aspirações muito generalistas ou ações pontuais em ocasiões específicas.

Principalmente na América Latina, os anos 2000 trouxeram uma série de mudanças políticas para a região com a eleição de governadores mais progressistas. A sociedade civil organizada ganhou espaço nos debates políticos, mas os avanços na garantia dos direitos sociais ainda esperam por uma maior concretização. Como analisa este fenômeno?



O fator mais positivo para a América Latina é a diminuição efetiva da influência política e ideológica — e, na América do Sul, também econômica — dos EUA. Um segundo fator muito importante é o surgimento de governos progressistas — novamente mais fortes na América do Sul — , inspirados pela grande tradição da igualdade, fraternidade e liberdade, que comprovadamente está mais viva aí do que em outras regiões do mundo neste momento. Estes novos regimes têm se beneficiado de um período de altos preços de seus bens de exportação. Quão profundamente serão afetados pela crise econômica, principalmente o Brasil e a Venezuela, ainda não está claro. Suas políticas têm logrado algumas melhorias sociais genuínas, mas até agora não reduziram significativamente as enormes desigualdades econômicas e sociais de seus países. Esta redução deve permanecer a maior prioridade de governos e movimentos progressistas.

Diante da crise civilizatória, do fracasso do capitalismo e da inoperância dos sistemas multilaterais, que não foram aptos a enfrentar as grandes questões mundiais, as esquerdas têm se debatido na busca de alternativas; mas nem consensos nem respostas parecem despontar no horizonte. Haveria, em sua opinião, a possibilidade real da construção de um novo socialismo, uma nova forma de lidar com o planeta e sua gente, capaz de enfrentar a hegemonia bélica, econômica e política do neoliberalismo?

Eu não acredito que exista uma oposição binária simples entre “um novo socialismo” e a “hegemonia do capitalismo”. Não existe apenas uma forma de capitalismo. A tentativa de aplicar um modelo único, o “fundamentalismo de mercado” global anglo-americano, é uma aberração histórica, que potencialmente colapsou agora e não pode ser reconstruída. Por outro lado, o mesmo ocorre com a tentativa de identificar o socialismo unicamente com a economia centralizada planejada pelo Estado dos períodos soviético e maoísta. Esta também já era (exceto talvez se nosso século for reviver os períodos temporários de guerra total do século 20). Depois da atual crise, o capitalismo não vai desaparecer. Vai se ajustar a uma nova era de economias que combinarão atividades econômicas públicas e privadas. Mas o novo tipo de sistemas mistos tem que ir além das várias formas de “capitalismo de bem estar” que dominou as economias desenvolvidas nos trinta anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.



Deve ser uma economia que priorize a justiça social, uma vida digna para todos e a realização do que Amaratya Sen chama de potencialidades inerentes aos seres humanos. Deve estar organizada para realizar o que está além das habilidades do mercado dos caçadores-de-lucro, principalmente para confrontar o grande desafio da humanidade neste século 21: a crise ambiental global. Se este novo sistema se comprometer com os dois objetivos, poderá ser aceitável para os socialistas, independente do nome que lhe dermos. O maior obstáculo no caminho não é a falta de clareza e concordância entre as esquerdas, mas o fato de que a crise econômica global coincide com uma situação internacional muito perigosa, instável e incerta, que provavelmente não estabelecerá uma nova estabilidade por algum tempo. Entrementes, não há consenso ou ações comuns entre os Estados, cujas políticas são dominadas por interesses nacionais possivelmente incompatíveis com os interesses globais.

Conceitos como solidariedade, cooperação, tolerância, justiça social, sustentabilidade ambiental, responsabilidade do consumidor, desenvolvimento sustentável, entre outros, têm encontrado eco, mesmo de forma ainda frágil, na opinião pública. Acredita que estes princípios poderão, no futuro, ganhar força e influenciar a ordem mundial? Vê algum caminho que possa aproximar a humanidade a uma coabitação harmoniosa?

Os conceitos listados estão mais para slogans do que para programas. Eles ou ainda precisam ser transformados em ações e agendas (como a redução de gases de efeito estufa, encorajada ou imposta pelos governos, por exemplo), ou são subprodutos de situações sociais mais complexas (como “tolerância”, que existe efetivamente apenas em sociedades que a aceitam ou que estão impedidas de manter a intolerância). Eu preferiria pensar na “cooperação” não apenas como um ideal generalista, mas como uma forma de conduzir as questões humanas, como as atividades econômicas e de bem estar social. Me entristece que a cooperação e a organização mútua, que eram um elemento tão importante no socialismo do século 19, desapareceram quase que completamente do horizonte socialista do século 20 – mas felizmente não da agenda do MST. Espero que esta lista de conceitos continue conquistando o apoio e mobilize a opinião pública para pressionar efetivamente os governos. Não acredito que a humanidade alcançará um estado de “coabitação harmoniosa” num futuro próximo. Mas mesmo se nossos ideais atualmente são apenas utopias, é essencial que homens e mulheres lutem por elas.


O senhor, que estudou com profundidade a história do mundo e as relações humanas nos últimos séculos, o que espera do futuro?

Se a crise ambiental global não for controlada, e o crescimento populacional estabilizado, as perspectivas são sombrias. Mesmo se os efeitos das mudanças climáticas possam ser estabilizados, produzirão enormes problemas que já são sentidos, como a crescente competição por recursos hídricos, a desertificação nas zonas tropicais e subtropicais, e a necessidade de projetos caros de controle de inundações em regiões costeiras. Também mudarão o equilíbrio internacional em favor do hemisfério Norte, que tem largas extensões de terras árticas e subárticas passíveis de serem cultivadas e industrializadas. Do ponto de vista econômico, o centro de gravidade do mundo continuará a se mover do Oeste (América do Norte e Europa) para o Sul e o Leste asiático, mas o acúmulo de riquezas ainda possibilitará às populações das velhas regiões capitalistas um padrão de vida muito superior às dos emergentes gigantes asiáticos. A atual crise econômica global vai terminar, mas tenho dúvidas se terminará em termos sustentáveis para além de algumas décadas. Politicamente, o mundo vive uma transição desde o fim da Guerra Fria. Se tornou mais instável e perigoso, especialmente na região entre Marrocos e Índia. Um novo equilíbrio internacional entre as potências — os EUA, China, a União Européia, Índia e Brasil — presumivelmente ocorrerá, o que poderá garantir um período de relativa estabilidade econômica e política, mas isto não é para já. O que não pode ser previsto é a natureza social e política dos regimes que emergirão depois da crise. Aqui as experiências do passado não podem ser aplicadas. O historiador pode falar apenas das circunstâncias herdadas do passado. Como diz Karl Marx: a humanidade faz a sua própria história. Como a fará e com que resultados, muitas vezes inesperados, são questões que ultrapassam o poder de previsão do historiador.


Fonte: Instituto Humanitas Uninisinos (IHU)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

História Ambiental Made in Brazil


Por Douglas Barraqui

“Abençoado por Deus e bonito por natureza”. Essa é uma típica frase que nós brasileiro gostamos de dizer quando fazemos referência às belezas de nossa terra, belezas que fazem do Brasil um objeto singular para a história ambiental. José Augusto Drummond, um dos nossos maiores nomes da história ambiental, diz que esta disciplina – para nós brasileiros – é estrangeira, por ser, em até certo grau, desconhecida por muitos. Eu digo que ela se faz timidamente e que, em “terras tupiniquins”, há excelentes trabalhos nesse campo.


É notório que os cientistas sociais latinos americanos, ao trabalharem história ambiental, demonstram maior apego as temáticas sociais e o Brasil não destoa dessa realidade. Mesmo possuindo uma gama de ecossistemas, biomas, processos ecológicos e consequente inúmeras paisagens naturais – o que torna o Brasil rico em interações entre a sociedade humana e o meio natural –, os historiadores de língua inglesa sabem muito mais sobre a natureza biofísica do que os cientistas sociais brasileiros.


Falta aos cientistas sociais brasileiros maior dialogo com as ciências naturais, com os próprios movimentos ambientalistas, a fim de que assistam de perto a realidade e, é claro, faltam incentivos para a investigação ambiental do próprio governo.


Todavia, nos últimos dez anos, a história ambiental made in Brazil rendeu bons frutos, demonstrando um destacado desenvolvimento. Isso se deve, em grande parte, à qualidade dos trabalhos produzidos e às nossas universidades que possuem um papel ímpar na produção científica do país. Resumindo, embora não esteja consolidada, a história ambiental está em solo fértil e está, certamente, em crescimento. Isso ficou demonstrado no primeiro encontro acadêmico de história ambiental do Brasil, que ocorreu em maio de 2008, em Belo Horizonte, organizado por Regina Horta Duarte, uma lider da disciplina no Brasil. Os avanços da disciplina ambiental também foram demonstrados no IV Simpósio da Sociedade Latino-Americana e Caribenha de História Ambiental (SOLCHA), realizado em maio de 2009 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


Acho prudente destacar que, embora pesquisadores brasileiros tenham feito importantes contribuições para uma história ambiental do Brasil, eu ainda não encontrei um profissional que se dissesse historiador ambiental. São, em grande parte, trabalhos paralelos.


Abaixo apresento um roteiro introdutório de produções de historiadores brasileiros que passam pelo viés da história ambiental:


ARRUDA, Gilmar (Orgs.). A natureza dos rios. Ed. EFPR 2009, p. 265.

ARRUDA, Gilmar. Cidades e Sertões. Bauru, EDUSC, 2000.

ARRUDA, Gilmar, et al (Orgs.). Natureza na América Latina – apropriações e representações. Londrina. Editora da UEL, 2001.

BERTRAN, Paulo. História da Terra e do Homem no Planalto Central. Revista ampliada, Brasília: verano, 2000.

BUENO, Eduardo et alli. Pau-brasil. São Paulo, Axis Mundi, 2002.

CASCUDO, Luís de Câmara. Civilização e Cultura – pesquisas e notas de etnografia geral. São Paulo, Global, 2004.

CASTRO, Carlos Ferreira de Abreu. Gestão Florestal no Brasil Colônia. (Tese de Doutorado em Desenvolvimento Sustentável Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, 2002).

CASTRO, Maria Inês Malta. Natureza e Sociedade em Mato Grosso, 1850 -1930. (Tese de Doutorado, Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, fevereiro 2001).

COSTA, Kelerson Semerene. Homens e Natureza na Amazônia Brasileira: dimensões. (Tese de Doutorado (História), Universidade de Brasília. Brasília).

COSTA, M. Panorama de um País inexistente - O Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo Estação Liberdade: Kosmos, 1999.

CATÃO, Leandro Pena & SANTOS, Tatiane Conceição dos Santos. História Ambiental a partir do patrimônio urbano ambiental e da prática turística. História Ambiental & Turismo. Vol 4 – nº 1, maio de 2008.

CLÁUDIA, Heynemann. Floresta da Tijuca: natureza e civilização no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, divisão de edição, 1995.

COUTO, Jorge. A Construção do Brasil - ameríndios, portugueses e africanos, do inicio do povoamento a finais de Quinhentos. Lisboa, Cosmos, 1998.

DRUMMOND, José augusto. A historia ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, 4(8), 1991, 177-197.

DRUMMOND, José augusto. Ciência Social Ambiental – notas sobre uma abordagem necessariamente eclética, em Rival Carvalho Rolim et al (Orgs.). História Espaço e Meio Ambiente – coletânea – VI Encontro Regional de História Ambiental da ANPUH. Maringá, ANPUH, PR, 2000.

DRUMMOND, José augusto. Devastação e preservação ambiental no Rio de Janeiro. Niterói, EDUFF, 1997.

DRUMMOND, José Augusto. O sistema brasileiro de parques nacionais: análise dos resultados de uma política ambiental. Niterói, Rio de Janeiro: EDUFF, 1997.

DRUMMOND, José Augusto. Por que estudar a história ambiental do Brasil? – ensaio temático. Varia História, nº 26 janeiro, 2002

DRUMMOND, José Augusto. The Garden in the Machine: An Environmental History of Brazil's Tijuca Forest. Environmental History 1, no. 1: 83-104, 1996.

DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte, Autêntica, 2005.

ESPINDOLA, Haruf Salmen. Sertão do Rio Doce. Bauru, EDUSC, 2005.

FADEL, Simone. Meio ambiente, saneamento e engenharia no império e na Primeira República. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

FRANCO, José Luiz de Andrade. Proteção à Natureza e Identidade Nacional: 1930-1940. (Tese de Doutorado (História), Universidade de Brasília. Brasília, julho 2002).

FUNARI, Pedro Paulo e NOELLI, Francisco Silva. Pré-História do Brasil. São Paulo, Contexto, 2005.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. ampliada: São Paulo, Brasiliense, 1990.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Extremo Oeste. São Paulo, Brasiliense e Secretaria de Estado de Cultura, 1986.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo, Brasiliense, 1994.

LEONARDI, Victor. Os Historiadores e os Rios – natureza e ruína na Amazônia brasileira. Brasília, Paralelo 15 e Editora da Universidade de Brasília, 1999.

MARTINEZ, Paulo Henrique (Org.). História ambiental paulista: temas, fontes, métodos. Editora Senac, 2007.

MARTINEZ, Paulo Henrique. História Ambiental no Brasil - pesquisa e ensino. São Paulo, Cortez, 2006.

MARTINEZ, Paulo Henrique. Laboratório de história e meio ambiente: estratégia institucional na formação continuada de historiadores. Revista Brasileira de História, Vol. 24, número 48, 2004, pp. 233-251

NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do; DRUMMOND, Jose Augusto. Amazônia: dinamismo econômico e conservação ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

OTONI, T. Noticia sobre os selvagens do Mucuri. Organizado por Regina Horta. Belo Hmorizonte, Editora UFMG, 2002.

PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento e política ambiental no Brasil escravista, 1786-1888. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2004.

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SOFFIATI NETTO, Aristides Artur. O nativo e o exótico — perspectivas para a história ambiental na ecorregião norte-noroeste fluminense entre os séculos XVII e XX. (Dissertação de Mestrado, UFRJ. Rio de Janeiro, 1996).

TENÓRIO, Maria Cristina (org.). Pré-História da Terra Brasilis. Rio de Janeiro, Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Darwin e a Mata Atlântica


Imaginar as sensações do jovem Darwin ao desembarcar no Brasil em fevereiro de 1832 não é tarefa fácil. Em seu diário a bordo do HMS Beagle, o naturalista se mostra maravilhado ao vivenciar a exuberância da fauna e flora de uma então quase intacta Mata Atlântica.

Ao chegar a Salvador, ele definiu um passeio pela Mata Atlântica como delicioso para logo depois emendar: “ Delicioso em si, entretanto, é um termo fraco para expressar os sentimentos de um naturalista, que pela primeira vez, passeou sozinho em uma floresta brasileira. A elegância da coberta do solo, a novidade das plantas parasitas, a beleza das flores, o verde brilhante da folhagem, mas, sobretudo, a vegetação luxuriante me encheram de admiração. (...) Para uma pessoa que aprecia história natural, um dia como este gera um profundo prazer que não se pode ter esperança de vivenciar outra vez.”

Mas foi no Rio de Janeiro, onde passou três meses, que Darwin teve a sua maior vivência com a natureza brasileira. Hospedado na então baía de Botafogo, o naturalista se encantou com a paisagem do Rio. Pão de Açúcar, Corcovado, o recém-criado Jardim Botânico e a até então distante Pedra da Gávea foram as trilhas perfeitas para a observação das mais variadas espécies da Mata Atlântica.

Em uma curta viagem até Cabo Frio, ao norte do estado, Darwin passou pelo o que é hoje o Parque Estadual Serra da Tiririca, uma unidade de conservação fluminense entre Niterói e Maricá. Com 2.260 hectares, o parque protege áreas de Mata Atlântica, costões rochosos, restinga, mangue e banhados, e oferece a trilha Caminho Darwin.

No entanto Darwin ficaria chocado com a situação da Mata Atlântica atual, comparada com seu estado no século XIX. Recordista mundial em biodiversidade, a floresta também é uma das regiões mais ameaçadas do planeta. Da sua cobertura original, restam apenas 7,3% resultado de uma exploração não sustentável na região mais desenvolvida e ocupada do Brasil.

Confira alguns trechos do diário de bordo de Charles Darwin durante a sua passagem pelo Rio de Janeiro:

8 de Abril de 1832
“(...) quando passamos pelos bosques, tudo parecia imóvel, exceto as grandes e brilhantes borboletas, que batiam as asas preguiçosamente”.

14 de Abril de 1832
“A floresta é abundante em belezas; entre elas, samambaias que, embora não muito grandes, eram pela verde e brilhante folhagem e elegante curvatura de suas folhas, muito dignas de admiração”.

18 de Abril de 1832
“É fácil especificar os objetos de admiração nesses cenários grandiosos, mas não é possível oferecer uma ideia adequada das emoções que sentimos, entre maravilhados, surpresos e com sublime devoção, capazes de elevar a mente.”

As citações de Darwin reproduzidas nesse texto foram retiradas de:
Entendendo Darwin – A viagem a Bordo do HMS Beagle pela América do Sul
Apresentação Marcelo Gleiser / Editora Planeta, São Paulo, 2009-08-24
Fonte: WWF Brasil

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Os “Rurbanos” contra a natureza

Por Augustine Berque

Filadélfia, outubro de 2000. Em uma palestra sobre o habitathumano, o geógrafo Brian J. L. Berry apresentou à platéia o termo “e-urbanização”. Sua reflexão abarcava basicamente os Estados Unidos. Na ocasião, Berry afirmou que a dispersão do habitat, já em curso, fora virtualmente induzida pela fusão perfeita entre a revolução na informática e o “mito norte-americano” – combinação do gosto pela novidade, do desejo de estar em contato com a natureza, do sentimento de existência de um destino e do crisol de onde sai, supostamente, a “nova raça” norte-americana.

Para Berry, essa movimentação já existia há tempos, mas foi freada pela era industrial mais pesada, que impôs a concentração, e voltou à tona apenas no processo de metropolização, quando os carros começaram a diluir os centros urbanos. A partir daí, as formas individuais de interação se desenvolveram e, apesar de cada vez mais estereotipadas, facilitaram as relações à distância, que implicavam no consumo do espaço ligado ao uso massivo do automóvel. Veio então o ciberespaço, concretizado pela e-urbanização, e a tendência foi ampliada: agora a internet permite morar em meio à natureza, encomendando tudo sem sair de casa, sem precisar ir ao trabalho ou fazer compras na cidade. A essência da “americanidade” era finalmente concretizada com a abolição da cidade!

Na Europa, esse modelo é tolhido, até certo ponto, pelo ideal da cidade. Quando lhe perguntaram o que corresponderia a tal ideal nos Estados Unidos, Berry respondeu, após alguns instantes, de reflexão: “a natureza”.

Na época, eu dava aula numa universidade japonesa em que se estudava as aplicações da informática ao habitat. Em uma discussão, meus alunos exprimiram ideais bastante próximos aos de Berry, mas com uma pequena diferença: para eles, a aspiração de morar junto à natureza se explicava pela permanência da mentalidade japonesa, que transcendia os avanços tecnológicos. Assim, tanto o mito norte-americano quanto seu equivalente nipônico coincidiam em encontrar na busca da natureza a expressão de sua respectiva autenticidade.

É impressionante que nenhum dos dois países perceba que a urbanização difusa, longe de beneficiar a natureza, tem como efeito principal o aumento da pressão humana sobre o ambiente. Ou seja, causa a destruição do próprio objeto de desejo. É o que ilustra a parábola do entregador de tofu: suponha uma cidade tradicional, bem compacta, antes da popularização do automóvel. Cem habitantes iam a pé comprar tofu na loja da esquina. Agora, tomemos o urbano difuso. Cada um desses cem habitantes mora numa casa individual, isolada no fim de uma estradinha, e encomenda o tofu pela internet. Para entregar a mercadoria passam a ser necessárias cem viagens motorizadas no fim de cem ruas. O que é mais ecológico, a cidadezinha ou o urbano difuso?

Apoiados em números, os urbanistas e os geógrafos provaram que um habitat disperso é indiscutivelmente mais caro que uma cidade com população equivalente. A isso se contrapôs um argumento forte, fundado em pesquisas de opinião exemplarmente estáveis: três quartos da população queriam casas individuais. Uma afirmação surreal e impossível de se concretizar! Mesmo assim, o mercado tentou organizar a empreitada: no final do século XX, o urbano difuso se disseminou em todos os países ricos.

Como o fenômeno está diretamente ligado ao uso do automóvel [1], ele se manifestou precocemente nos Estados Unidos. Em 1964, o urbanista norte-americano Melvin Webber foi o primeiro a chamar a atenção para a mudança[2]: conforme sua tese, a cidade de antigamente, bem circunscrita e diferente do campo, deu lugar ao que ele chamou de “domínio urbano”.

Não se deve confundir essa forma de urbanização com a multiplicação das metrópoles, que ocorre nos países pobres (os ricos já haviam passado por esse processo de desenvolvimento). No urbano difuso, os habitantes são sociologicamente citadinos, não camponeses, mas o habitatque procuram é rural. Por isso eles fogem da cidade, estabelecendo um segundo domicílio ou um lar definitivo. Já nos países pobres é do campo que se foge, em busca da cidade.

Entre esses dois pólos teóricos não faltam situações intermediárias. Historicamente, a periferia precede o urbano difuso. A partir dessa etapa, a situação varia de país para país. Grosso modo, pode-se distinguir um tipo oceânico, no qual os ricos moram longe do centro, e um tipo continental, em que se verifica o contrário. O mundo anglo-saxão e o Japão são de tipo oceânico; a França, de tipo continental. Mais recentemente, o fenômeno complicou-se nas grandes cidades, com uma tendência ao aburguesamento dos centros, tornados inacessíveis à classe média pela especulação imobiliária [3]. Nos bairros centrais do Japão, por exemplo, a renovação urbana multiplica os manshon, prédios altíssimos em que os apartamentos são vendidos a preços igualmente elevados.

Nos países ricos, detecta-se uma tendência global à urbanização difusa do conjunto dos territórios à medida que uma população de tipo urbano tende a substituir as antigas camadas camponesas. E, seja qual for a razão conjuntural que leve à decisão de comprar um imóvel mais ou menos longe dos centros, a motivação mais generalizada desse movimento é o desejo de morar perto da natureza.

Claro, aquilo que um americano e um japonês médios entendem por “natureza” difere consideravelmente [4]. Depende dos ambientes e da história. No entanto, o fenômeno do urbano difuso manifesta uma convergência para modos de vida análogos. Mas por que as sociedades ricas passaram a idealizar esse modelo de habitação? (ler nesta edição)

Essa história se estende por mais de três milênios, desde as suas expressões mitológicas mais antigas até as motivações contemporâneas. E hoje chegou a um paradoxo insustentável: a busca da “natureza” como paisagem destrói seu próprio objeto, a natureza como ecossistemas e biosfera. Associada ao automóvel, a casa individual passou a ser a força motriz de um gênero de vida cuja desmesurada “pegada ecológica” [5] leva a um superconsumo dos recursos naturais, uma situação insustentável em longo prazo. O urbano difuso dilapida o capital ecológico da humanidade e nos leva, literalmente, ao suicídio.

[1] Para nos limitarmos à compra e venda de combustível, um estudo de Newman e Kenworthy comparando 32 cidades ricas, ultimamente muito citado na imprensa internacional (p. ex., Libération, 12-13 de janeiro de 2007, p. 34), mostra que esse consumo é inversamente proporcional à densidade: máximo em Houston, mínimo em Hong-Kong.

[2] Melvin Webber, L’Urbain sans lieu ni bornes [O urbano sem lugar nem limite], L’Aube, La Tour d’Aigues, 1996.

[3] François Ruffin, “Penser la ville pour que les riches y vivent heureux” [“Pensar a cidade para que os ricos vivam feliz”], Le Monde diplomatique, janeiro de 2007.

[4] Compare-se, por exemplo, Max Oelschlaeger, The idea of wilderness, from Prehistory to the Age of Ecology [“O ideal de regiões despovoadas, da Pré-história à Era da Ecologia], New Haven, Yale University Press, 1991, e Augustin Berque,Le Sauvage et l’artifice. Les Japonais devant la nature [O selvagem e o artifício. Os japoneses diante da naturaza], Paris, Gallimard, 1986.

[5] “Pegada ecológica”: extensão necessária à renovação, pelos ecossistemas, dos recursos que destruímos. Atualmente, a “pegada ecológica” da humanidade é superior a um terço da biocapacidade da Terra.

Fonte: Jornal Le Monde – http://diplo.uol.com.br/

sábado, 5 de setembro de 2009

Da História Ambiental à Consciência Ecológica


Por Douglas Barraqui

O futuro nunca dependeu tanto do presente como agora. Embora, já na década de 1960 o meio ambiente tomava seu espaço na agenda política de vários países, em nenhum outro momento os alarmes tocados pelas entidades ligadas ao meio ambiente e por cientistas se fizeram tanto ouvir.

As provas empíricas de uma realidade atroz, a de uma crise ambiental em proporções catastróficas, estão por todas as partes, é neste aspecto que as ciências humanas e naturais são desafiadas a provar seu valor e justificar suas eficiências enquanto ramos da produção do conhecimento humano.

Após a segunda Grande Guerra, houve um gradativo crescimento da sociedade de consumo na América do Norte e na Europa, fazendo com que aumentasse a pressão sobre os recursos naturais do planeta; os debates ambientais passam ser calorosos e surgem novos paradigmas. Como uma disciplina na qual seu objeto é o homem, e mais precisamente os homens no tempo [1], a historiografia era desafiada a enfrentar um novo problema, novas abordagens e novas questões. Eis que surge, no âmbito científico e acadêmico Norte Americano, a environmental history (história ambiental): “como um sujeito, é o estudo de como os seres humanos têm relacionado, com mundo natural através do tempo; como um método, é a aplicação de princípios ecológicos para a história” [2]; “sua principal meta é aprofundar nossa compreensão de como os seres humanos têm sido afetados pelo seu ambiente natural através do tempo e, inversamente, como eles têm afetado o ambiente e com que resultados” [3].

O problema epistemológico da história não pode ficar resumido a um problema intelectual e científico, há algo mais além que, agora mais do que nunca, o historiador será provado e terá que enfrentar: um problema cívico e mesmo moral, o historiador tem que prestar contas [4]. É fundamental, portanto, compreender onde se dá a aplicação prática da história ambiental a fim de identificar e dissolver os gargalos que limitam seu espaço de atuação. Para tanto, a iniciativa terá que partir do próprio homem, aquele que não deixa o passado ser esquecido. O historiador terá que engolir qualquer orgulho acadêmico ou de formação teórica, suplantar qualquer forma de “pré-conceito” na troca do saber entre outros ramos da produção do conhecimento e olhar para o meio ambiente – seu meio ambiente – como sua base de existência e o limite do fim da história.

O objetivo em questão é colocar a natureza de volta aos estudos históricos, condicionalmente, explorar as formas pelas quais o mundo biofísico tem influenciado o curso da história da humanidade e as formas, assim como os porquês, que as pessoas têm transformado o seu meio [5]. Na qualidade de pesquisador elenco pontos que, em nossa conjuntura histórica de emergência para uma tomada de ação, são valorosos para o campo da história ambiental: 1) reconhecer a importância e necessidade de um olhar que caminhe pela interdisciplinaridade, promovendo o envolvimento entre as disciplinas, respeitando e reconhecendo suas respectivas fronteiras, caminhando na direção da interação a fim de ampliar o campo de visão da história. 2) fomentar a crescente interação internacional – tendo em vista que as problemáticas referente a meio ambiente tem que ser assistidas por todos os países – das ciências humanas e sociais através da cooperação entre os centros de pesquisas. 3) aproximar os problemas, os resultados e as soluções aos receptores – que não podem ser vistos como passivos do conhecimento alheio – afim de que possam interagir no processo que depende de todos a fim de uma maior consciência ecológica.

Não é mais contra a natureza que devemos lutar – até século XIX as formas e corpos naturais eram encaradas puramente como empecilhos a ocupação humana – mas, sim em sua defesa. A adoção de uma “paradigma de imunidade humana” (human exemptionalism paradigm) aos fatores da natureza, podem ajudar a explicar o motivo da antipatia das ciências sociais – desde suas origens – quanto a um “despertar ecológico” [6]. Seria, portanto, uma ignorância confinar e limitar as ciências sociais às pesquisas básicas e, um crime, em longo prazo ignorar sua contribuição, em um momento em que uma revolução na sensibilidade humana é tão necessária.

Avançar nas concepções das relações homem/natureza constitui uma tarefa difícil, mas de extrema necessidade. A história ambiental não pode ser encarada, portanto, como um mero movimento ambientalista no ceio da historia, um modismo passageiro e, tão pouco como uma história do ambientalismo. Em uma aplicação prática é denuncia pública? Sim, mas é também um ramo de produção do conhecimento com fundamentais reflexões e embates filosóficos e historiográficos. O que está em jogo não é a sobrevivência da história ou um simples esforço para ampliar o campo de narrativa da historiografia, mas sim, a sobrevivência da humanidade e do planeta.

NOTAS:

[1] BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. Pg. 24.

[2] HUGHES, J. Donald. Ecology and Development as Narrative Themes of World History. Environmental History Review 19:1-16 (Spring 1995) Pan's Travail, London, 1994. Pg. 3

[3] WORSTER, Donald. Ed. The Ends of the Earth: Perspectives on Modern Environmental History. Cambridge; New York: CambridgeUniversity Press, 1988. Pg. 290-291.

[4] BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. Pg. 17.

[5] WORSTER, Donald. "Path Across the Levee”, In: The Wealth of Nature. Environmental History and the Ecological Imagination (Oxford, 1993), p. 20.

[6] DRUMMOND, José Augusto. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/84.pdf. Acesso em 5 agosto de 2009.

BIBLIOGRAFIAS:

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002.

DRUMMOND, José Augusto. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/84.pdf. Acesso em 5 agosto de 2009.

HUGHES, J. Donald. Ecology and Development as Narrative Themes of World History. Environmental History Review 19:1-16 (Spring 1995) Pan's Travail, London, 1994.

WORSTER, Donald. Ed. The Ends of the Earth: Perspectives on Modern Environmental History. Cambridge; New York: CambridgeUniversity Press, 1988.

WORSTER, Donald. "Path Across the Levee”, In: The Wealth of Nature. Environmental History and the Ecological Imagination (Oxford, 1993).



Você também pode ter acesso a este artigo na Rede Brasileira de História Ambiental (RBHA).

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

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HISTÓRIA DAS PAISAGENS

De Francisco Carlos Teixeira da Silva, análise por Douglas Barraqui

O que se segue, caro leitor, é uma breve resumo analítico sobre o texto, história das paisagens, de Francisco Carlos Teixeira da Silva, disponível na obra organizada por Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas Domínios da História.

Embora aparente ser uma disciplina nova, com uma densidade teórica ainda frágil e poucos exemplos práticos, a história das paisagens é um campo antigo – mais antigo mesmo do que a história social ou a história demográfica.

Estudiosos alemães, franceses e ingleses – desde o início do século e, especialmente, na década de 1930 – produziram obras que delimitaram, entre a geografia humana ou histórica e a história agrária, um campo novo.

Definição do campo

Desde o final do século XVIII há, entretanto, uma sólida tendência de pensar a natureza em oposição ao homem ou a cultura. Particularmente o idealismo e o romantismo alemães, no século XIX, forçaram a uma distancia absoluta entre natur e kultur. Tal visão contaminou fortemente a história, como as demais ciências sociais, de forma a estabelecer uma periodização em que ambos os termos aparecessem como pontas opostas de um processo.

A distinção entre paisagem física e paisagem cultural, como feita na história, e que ainda prevalece na geografia, nos diz Francisco, deve ceder espaço para uma nova visão, cuja ênfase recai nos resultados da ação do homem sobre o meio ambiente. Devemos entender a natureza, nesta visão, não mais como um dado externo e imóvel, mas como produto de uma prolongada atividade humana: “... a natureza virgem não é mais do que um mito criado pela ideologia de civilizado sonhadora de um mundo diferente do seu”.

Pretende-se, assim, superar a visão tradicional das ciências humanas de considerar as “forças naturais” como um fator externo ao processo histórico: “... [é necessário] integrar a aparente dicotomia homem/natureza num quadro de referencia histórica mais vasta”. Tal processo é complexo, se inscreve na longa duração e é, em larga escala, involuntário.

Desde seus primeiros trabalhos Roger Dion, Marc Bloch ou Robert Gradmann destacam o campo, a aldeia e o bosque como os temas centrais da história das paisagens.

Entretanto trabalhos mais recentes como os de Jean-Robert Pitte e a vigorosa Histoire de La France Urbaine de G. Duby (surgida em 1983), ampliaram o campo de investigação em direção à história urbana.

A incorporação das grandes massas de adensamento humano e seu peso sobre o meio ambiente impõe-se como tema ao historiador. Trata-se de uma visão de conjunto, do enlace de múltiplas variáveis, em uma duração sempre longa. Impõe-se para tal uma abordagem holística, de conjunto, uma síntese para além das histórias particulares.

Os suportes teóricos

O tratamento das relações homem/natureza é o campo próprio da ecologia humana. Suas origens remontam o século XIX. (...) o alemão Ernst Haeckel (1834 – 1919) formular pela primeira vez, em 1869, seu campo de interesse: “a soma de todas as relações amigáveis ou antagonistas de um animal ou de uma planta com o meio inorgânico, neste incluído outros seres vivos”. Seu ponto de partida foi o trabalho de Charles Darwin, Origem das Espécies, publicado em 1859. Permanece a competição dos seres vivos, pelos recursos naturais, culminando com a vitória dos mais aptos. Na verdade, ambos – tanto Darwin quanto Haeckel – estavam sob influência direta do profundo pessimismo de Malthus. (...) Na Europa imperialista avolumava-se uma visão reducionista da natureza: uma percepção utilitária, claramente ancorada na idéia de função econômica.

A superação de tal análise, etnocêntrica e reducionista, se dá, em larga escala, pelo contato com o marxismo. (...) pensando as diferenças sociais, econômicas e culturais, diversificando, no tempo e no espaço, o tipo da organização da produção da vida material. (...) coube à antropologia marxista a recuperação dos variados sistemas de relacionamentos entre o homem e a natureza. (...) Ao mesmo tempo pode-se negar a afirmação da análise substantivista, como em Karl Polanyi, de que somente as sociedades altamente mercantilizadas seriam capazes de estratégias de otimização do uso dos recursos naturais.

À tal visão multilinear das relações homem/natureza somar-se-ia, na década de 1980, uma nova visão de (auto) regulação dos sistemas. (...) sob o influxo de Von Neumann, penaram-se os sistemas em termos de retroação – o feedback.

No caso da análise histórica das paisagens deve-se considerar que são sistemas abertos, submetidos permanentemente a fatores aleatórios – entre os quais os variados tipos de ação humana – cujos resultados não são previsíveis.

As abordagens históricas

Witold Kula afirma que a paisagem se divide “cientificamente em paisagem natural e paisagem cultural”. O critério de distinção de uma para outra residirá em ter sido, ou não, transformado pela ação humana. Por fim conclui que na prática só a paisagem cultural é objeto de estudo do historiador.

Entretanto a antropologia, advertia que, uma distinção formal entre “natureza” e “cultura” era bastante difícil de estabelecer e, talvez, prejudicial. A paisagem surgia como produto da técnica (conjunto de recursos, materiais ou não, capazes de garantir a sobrevivência do homem) e do direito (normas e exigências estabelecidas pelo grupo humano). Ora, podemos ter exemplo em que ambos os casos combinam-se plenamente os fatores técnica e direito para definir e fixar uma paisagem.

Assim, nos diz o autor, tal como aborda a antropologia, como resultado de vários fatores, todos fundamentais na organização do espaço, pode-se enumerar: (1) os dados da geografia física; (2) os dados do direito; (3) a tecnologia disponível; (4) os dados da demografia; e (5) os dados da sociologia.

1. Os dados da geografia: nessa definição a geografia não definiria o quadro de análise e, muito menos, o processo histórico. A geografia apresenta-se assim, como condição sensível inicial, mas incapaz de determinar qualquer processo linear de evolução.

2. Os dados do direito: compreendemos aqui como os dados do direito o conjunto de regras, normas e tradições que regulam a apropriação e o uso da natureza pelo homem. Parcelas, cercas, campos homogêneos e áreas comunais – tudo depende das regras admitidas ou impostas pelo/ao grupo. Não só a paisagem rural é determinada amplamente pelo direito, mas também a urbana.

3. Os dados da tecnologia: toda a atividade humana frente a natureza é regida por um elemento básico: “a atividade econômica do homem é sempre um processo de intercâmbio de energia com a natureza”, como nos diz Kula. Ora, tal processo se dá através da produção de instrumentos técnicos que garantam a subsistência humana. A aplicação destas técnicas sobre os recursos naturais promovem um incessante processo de mudanças e alterações na natureza que, longe de permanecer imóvel, evolui, com ritmos diferentes e em direções diferentes. Historicamente coube ao fogo o primeiro papel de recurso técnico capaz de ser utilizado em larga escala como poupador do trabalho.

4. Os dados da demografia: em verdade é fundamental o cruzamento dos dados de população com a tecnologia disponível pelo grupo social para se estabelecer se há, ou não, uma relação positiva com a produção necessária de bens. Marc Bloch explica, por exemplo, como no início do século XIV uma população de 21 a 22 milhões de habitantes – cálculo mínimo – fazia da frança um país populoso: “... a sensação de escassez de terras, atitudes que, atitude que, ante extensões vazias, poderia julgar-se paradoxal, encontra uma explicação nas imperiosas necessidades de uma agricultura essencialmente extensiva. Em suma em vez de nomadismo de homens, o que havia era... uma espécie de nomadismo de campos”.

5. Os dados da sociologia: as decisões que incidem largamente sobre a paisagem – como o povoamento, a incorporação de novas técnicas ou a imposição de normas – dependem da existência de um centro de poder, de hierarquia social eficaz, em suma, de capacidade de coerção. No século XIX e início do século XX a presença de um forte proletariado urbano obrigou as autoridades a tomar decisões sobre o reordenamento do espaço urbano. Assim é importante que tais critérios sejam claramente explicitados, evitando respostas imediatistas.

As fontes

As fontes mais importantes para a análise das paisagens são variadas: códigos de posturas, registros fundiários, livros ou tratados de agronomia, a arqueologia, inclusive industrial, relato de viajantes e, naturalmente, a iconografia são fontes clássicas utilizadas por Roger Dion, Robert Gradmann ou Marc Bloch. Evidentemente, velhas fontes já utilizadas devem ser relidas à luz de novos objetos e cabe ao historiador inventar novas fontes para novos problemas.

Bibliografia:

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. História das Paisagens. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 203. Pg. 203-216

domingo, 23 de agosto de 2009

O Reino das Florestas


Por Evaristo Eduardo de Miranda


Há 8 mil anos, o Brasil possuía 9,8% das florestas mundiais. Hoje, o país detém 28,3%. Dos 64 milhões de km2 de florestas existentes antes da expansão demográfica dos humanos, restam menos de 15,5 milhões, cerca de 24%,segundo estudo da Embrapa Monitoramento por Satélite sobre a evolução das florestas mundiais. Dos 100% das florestas originais, a África mantém hoje 7,8%, a Ásia 5,6%, a América Central 9,7% e a Europa – o pior caso – apenas 0,3%. O Brasil ainda detém 69,4% de suas florestas originais. O paradoxo é que, em vez de ser reconhecido pelo seu histórico de manutenção da cobertura florestal, o país é severamente criticado pelos campeões do desmatamento e alijado da própria memória.


Na maioria dos países, a defesa da natureza é fenômeno recente. No Brasil, vem de longa data. Desde o século XVI, as Ordenações Manuelinas e Filipinas estabeleceram regras e limites para exploração das terras. Havia listas de árvores protegidas por lei, o que deu origem à expressão madeira-de-lei. O Regimento do Pau Brasil, de 1600, estabeleceu o direito de uso sobre as árvores e não sobre as terras. Consideradas reservas florestais da Coroa, não podiam ser destinadas à agricultura. Essa legislação garantiu a manutenção sustentável das florestas de pau-brasil até 1875, quando entrou no mercado a anilina. Ao contrário do que muitos pensam, a exploração racional do pau-brasil manteve boa parte da Mata Atlântica até o final do século XIX e não foi a causa do seu desmatamento, fato bem posterior.

Em 1760, um alvará de dom José I protegeu os manguezais. Em 1797, uma série de cartas régias consolidou as leis ambientais: pertencia à Coroa toda mata à borda da costa, de rio que desembocasse no mar ou que permitisse a passagem de jangadas transportadoras de madeiras. A criação dos Juízes Conservadores, aos quais coube aplicar as penas previstas na lei, foi outro marco em favor das florestas. E surgiu o Regimento de Cortes de Madeiras com regras rigorosas.

Em 1808, d. João VI criou o Real Horto Botânico do Rio de Janeiro, com mais de 2.500 ha, hoje republicanamente reduzido a 137 ha. Em 1809, ele deu liberdade aos escravos que denunciassem contrabandistas de pau-brasil. Em 1830, o total desmatado no Brasil era inferior a 30 mil km2. Hoje corta-se mais do que isso a cada dois anos. Em 1844, o ministro Almeida Torres propôs desapropriações e plantios de árvores para salvar os mananciais do Rio de Janeiro. Em 1861, por decreto de d. Pedro II, foi criada (e plantada) a Floresta da Tijuca. A política florestal da Coroa portuguesa e brasileira logrou manter as florestas preservadas até o final do século XIX. O desmatamento brasileiro é fenômeno do século XX. Em São Paulo, Santa Catarina e Paraná, a marcha para o Oeste trouxe grandes desmatamentos. As matas de araucárias foram entregues pela República aos construtores anglo-americanos de ferrovias, com as terras adjacentes.

Na Amazônia, a maior ocupação ocorreu na segunda metade do século XX. Há 30 anos, o desmatamento anual varia de 15 a 20 mil km2, com picos de 29 mil e 26 mil km2 em 1995 e 2003. Nos últimos dois anos, passou a 11 mil km2, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O desmatamento brasileiro não produziu desertos. Como na Europa, as florestas cederam lugar à agricultura moderna e competitiva, à pecuária, às florestas plantadas e às cidades. O Brasil é um líder agrícola mundial e não precisa derrubar uma árvore para dobrar sua produção. O Brasil é um dos países que mais mantém sua cobertura florestal. Com invejáveis 69,4% de suas florestas primitivas, o Brasil – verdadeiro reino das florestas – tem
grande autoridade para tratar desse tema face às críticas dos campeões do desmatamento mundial.

Evaristo Eduardo de Miranda é doutor em ecologia, chefe-geral da Embrapa Monitoramento por Satélite, autor do livro “Quando o Amazonas corria para o Pacífico” (Ed. Vozes) e diretor de Instituto Ciência e Fé (
mir@cnpm.embrapa.br
This e-mail address is being protected from spambots, you need JavaScript enabled to view it
). Disponível em: http://www.historiaambiental.org/. Acesso em 23 de agosto de 2009.