sábado, 18 de junho de 2011

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Por ora, sem substituto



Por Manuel Lume

No início, o uso em larga escala do petróleo teve um impacto ambiental positivo. Quando o querosene se mostrou mais eficiente e barato para a iluminação, a matança de baleias, que forneciam o óleo dos lampiões e lamparinas, caiu drasticamente. Desde então, descobriram-se mil e uma utilidades para o petróleo. Um site dos EUA chegou a listar quase 2 mil produtos de uso cotidiano que não poderiam ser feitos ou teriam custos proibitivos sem o petróleo. Entre eles a aspirina, o capacete de motociclista e o paraquedas.

Portanto, a era do Petróleo está ainda muito longe de ser completamente substituída por aquilo que se convencionou chamar de Era do Verde. Assim pensam os estudiosos ouvidos por Carta Verde, entre eles Carlos Alberto Lopes, diretor da GasEnergy. Por 32 anos, Lopes foi funcionário graduado da Petroquisa, a subsidiária da Petrobras da área de petroquímica. “Será impossível viver sem petróleo ainda por muito tempo”, diz.

Em vez de acabar, a cada dia se descobrem novos usos para as fibras sintéticas oriundas do petróleo, novos usos para seus múltiplos elementos químicos, que têm as moléculas quebradas pelo calor para dar origem a outro elemento, outro produto, milhares deles. A maioria desses usos é nobre, pois eles aumentam o nosso conforto, o nosso bem estar, a nossa saúde.

Na medicina, por exemplo. O Instituto de Química e de Bioquímica da USP, por exemplo, pesquisa o uso de polímeros (sintéticos) do petróleo no desenvolvimento de remédios contra o câncer e antibióticos de quinta- -geração, de altíssimo valor agregado. “Com isso, consigo direcionar melhor a terapêutica para a célula e diminuir a dose do medicamento, com uma liberação melhor, para atingir somente a célula afetada”, explica Marco Antonio Stephano, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

Suely Galdino, do Laboratório de Planejamento e Síntese de Fármacos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), tem outro exemplo: o famoso analgésico AAS (ácido acetilsalicílico), o primeiro remédio produzido em escala industrial (pela Bayer, na Alemanha), contém o Fenol, elemento químico que sai do Cumeno, derivado do Benzeno, que saiu da Nafta, que saiu do óleo original, o petróleo.

Há muitos outros exemplos da importância do petróleo na sociedade moderna. Basta olhar para dentro de casa, nos objetos, nas paredes, no assoalho, no teto, nos fios, nas tintas, nos canos, nos detergentes, nos armários, eletrodomésticos, nos objetos mais simples, como um saco plástico (que, no entanto, acondiciona alimentos, sangue de doadores e isola o lixo) ou nas coisas bonitas, como um daqueles vestidos dos desfiles de alta moda. Tudo tem PET, PVC, poliéster, polipropileno, polietileno, náilon, solvente, resina.

Popularmente, todos esses nomes se resumem ao plástico. Os plásticos, como os demais produtos extraídos dos hidrocarbonetos (átomos de hidrogênio e carbono), são constituídos de longas cadeias de moléculas chamadas polímeros, que, por sua vez, são formadas por moléculas menores, chamadas monômeros. Os polímeros podem ser naturais ou sintéticos. Os naturais, como algodão, madeira, cabelo e látex, entre outros, são comuns em plantas e animais. Os sintéticos, como os plásticos, são obtidos por meio de reações químicas. O tamanho e a estrutura da molécula do polímero determinam as propriedades do plástico.

Os polímeros são conhecidos do homem há pelo menos 3 mil anos. Em 1000 a.C., os chineses aprenderam a extrair um verniz de uma árvore que serviu de revestimento impermeável e durável, criando o lustra-móveis que -conhecemos até hoje. Nos 3.011 anos desde a descoberta chinesa, o homem moldou a madeira, a borracha, o aço, o vidro e descobriu a possibilidade de substituir tudo pelo plástico, com inúmeras vantagens. Hoje em dia, se produzem plásticos tão duros quanto o aço e tão transparentes quanto o vidro, e com grande economia de energia de produção na comparação. “O farol dos automóveis hoje é feito de policarbonato, não de vidro”, conta o pesquisador Luiz Pontes, doutor em engenharia química, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade de Salvador (Unifacs), que trabalhou 13 anos no Polo Petroquímico de Camaçari, na Bahia.

A indústria petroquímica, em consequência, perpassa quase todas as demais indústrias com seus insumos: de fertilizantes, plásticos, fibras químicas, tintas, corantes, elastômeros, adesivos, solventes, tensoativos, gases industriais, detergentes, inseticidas, vacinas animais (que são pesquisadas para aplicar também em homens), explosivos, na construção civil, nas telecomunicações, médico-hospitalar, distribuição de energia e outras centenas de segmentos. Os chamados plásticos geossintéticos são usados até para drenagem, controle de erosão e reforço do solo de aterros sanitários e em tanques industriais.

No Brasil, o fim da Era do Petróleo parece ter ficado mais longe depois da sua descoberta em áreas até 7 mil metros abaixo da linha da água do oceano, que multiplicou muitas vezes as reservas brasileiras. Somente as reservas provadas da Petrobras chegaram a 16 bilhões de barris de petróleo equivalente (somado ao gás) em 2010, segundo dados da própria estatal.

De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), a produção de químicos (não há dados isolados da petroquímica) foi responsável por 2,9% do Produto Interno Bruto (PIB) do País em 2010. São quase 5 mil empresas com mais de 300 mil empregados. Essa indústria faturou 228,8 bilhões de reais em 2010.

O grande problema da indústria petroquímica é ter como insumo básico um bem finito, o petróleo, fato que a torna insustentável no tempo. Além disso, é altamente poluente. Apesar dos avanços e das pesquisas, considerando apenas os plásticos, somente 15% do total produzido é reciclado. O resto vai para o lixo. Pratos, canetas, bijuterias, espuma, embalagens a vácuo e fraldas descartáveis, entre outros, ainda não são reciclados.

Segundo os especialistas ouvidos por Carta Verde, a reciclagem do plástico exige cerca de 10% da energia utilizada no processo primário. Uma série de produtos pode ser fabricada com resíduos plásticos, como cabides, pentes, garrafas, frascos, baldes, cerdas de escovas de dente, vassouras e painéis para a construção civil, entre outros.

Na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, existem equipamentos para a utilização de plásticos como fonte energética, com controles de emissão seguros, sem riscos para a saúde e o meio ambiente. A energia contida em 1 quilo de plástico equivale à de 1 quilo de óleo combustível. Além da economia e da recuperação de energia, com a reciclagem ocorre ainda uma redução de 70% a 90% da massa do material, restando apenas um resíduo inerte esterilizado. “Tudo deveria ser reciclado, mas falta dinheiro, falta cultura”, diz o pesquisador Luiz Pontes.



Para saber um pouco mais a respeito do petróleo recomendo as seguintes bibliografias:
 
BARRETO, Carlos E. P. A Saga do petróleo Brasileiro: “A Farra do Boi”. Ed. Nobel: São Paulo, SP 2001.

COHN, Gabriel. Petróleo e Nacionalismo. Difel – Difusão Européia do Livro: São Paulo, SP. 1968.

ERTHAL, João Marcello. “Para onde vão os royalties?“, Revista Carta Capital, v.12, n.378, p. 10-18, fevereiro de 2006.

FUSER, Igor.  O petróleo do Golfo Pérsico, ponto-chave da estratégia global dos Estados Unidos. p. 87-102. In: FRATI, Mila. (org.). Curso de formação em política internacional. Ed. Fundação Perseu Abramo: São Paulo, SP 2007.

LIMA, Haroldo. Petróleo no Brasil: A Situação , o Modelo e a Política Atual. Synergia Editora: Rio de Janeiro, RJ, 2008.

MONTEIRO MOBATO, José Bento R. O escândalo do petróleo e do ferro. Editora Brasiliense: São Paulo, SP, 1936.

MINADEO, Roberto. Petróleo, a maior indústria do mundo. Thex Editora: Rio de Janeiro, RJ, 2002.

NOGUEIRA, Luiz A. H. “A crise Energética atual e sua antecessora”. Revista SBPC Ciência e Cultura. Vol. 37, nº 6, pg. 952-956. São Paulo, SP, 1985.

NOGUEIRA, Pablo. “Pobres Cidades Ricas: Riqueza que não traz felicidade“, Revista UNESP Ciência, Unesp, ano 1, n. 5, fevereiro de 2010.

SANTOS, E. M. “Petróleo: quadro estratégico-global no início do séc. XXI”. Política Externa, v. 12, nº1, jun/jul/ago de 2003. p. 95-115.

PAUTASSO, Diego & OLIVEIRA, Lucas K.  A segurança energética da China e as reações dos EUA. Revista Contexto Internacional. vol 30, nº 2, dezembro de 2008.

PIRES, Paulo Valois. A Evolução do monopólio estatal do petróleo. Ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, RJ, 2000, 173 p.

POSTALI, Fernando A. S. Renda mineral, divisão de riscos e benefícios governamentais na exploração de petróleo no Brasil. Dissertação de Mestrado, BNDES: Rio de Janeiro, RJ, 2001. 119 p.

PIQUET, Rosélia & SERRA, Rodrigo (orgs.) Petróleo e região no Brasil: o desafio da abundância. Ed. Garamond Universitária: Rio de Janeiro, RJ. 2007.

SHAH, Sonia. A História do Petróleo. L&PM Editores: Porto Alegre, RS, 2007. 240p.

TORRES FILHO, Ermani T.  “O papel do Petróleo na Geopolítica Americana”. pg. 309-346. Em: FIORI, José Luís. (org.) O Poder Americano. Ed. Vozes: Petrópolis, RJ, 2004.

UNGER, Craig. As famílias do petróleo. Ed. Record: Rio de Janeiro, RJ, 2004.

VICTOR, Mario. A Batalha do Petróleo Brasileiro. Ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, RJ, 1970.

VIDAL, Gore. Sonhando a Guerra: Sangue por petróleo e a Junta Cheney-Bush. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, RJ. 2003, 175 p.

TORRES FILHO, Ermani T. “O papel do Petróleo na Geopolítica Americana”. pg. 309-346. Em: FIORI, José Luís. (org.) O Poder Americano. Ed. Vozes: Petrópolis, RJ, 2004.

YERGIN, Daniel. O Petróleo: uma história de ganância, dinheiro e poder. Ed. Página Aberta: São Paulo, SP, 1993, .932 p.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Código Florestal Brasileiro uma discussão polarizada: o povo brasileiro está perdido na selva



Por Douglas Barraqui 

“O Brasil não tem povo, tem público”; mais uma vez eu tenho que me deixar concordar com o axioma de Lima Barreto. O substituto do Código Florestal brasileiro, projeto 1.876/99 do deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP), contempla uma polarização da discussão quanto ao destino de nossas florestas. Ao povo brasileiro nada foi apresentado de concreto e assim não se houve o mesmo.

Maior proteção ambiental ou maior produtividade rural? É o “ser ou não ser” que polariza essa discussão sobre o substituto do Código Florestal. De um lado estão os ambientalistas que defendem o aperto do cerco aos ruralistas do mal. De outro está o agrobusiness que levantam a bandeira pelo desenvolvimento do agronegócio no Brasil. Teoricamente o discurso do desenvolvimento sustentável seria o interlocutor capaz de unir ecologistas, ruralistas e a sociedade, só que na prática isso não está ocorrendo.   

A Lei N.º 4.771 de 15 de setembro de 1965, mais conhecida como Novo Código Florestal Brasileiro,  trata das florestas em território brasileiro e demais formas de vegetação, define a Amazônia Legal, os direitos de propriedade e restrições de uso para algumas regiões que compreendem estas formações vegetais e os critérios para supressão e exploração da vegetação nativa. A Lei N.º 4.771 é chamada de “Novo Código Florestal” porque em 1934 já havia sido aprovado o “Código Florestal” (Decreto n.º 23.793) que, no entanto, não deu certo devido às dificuldades para sua implementação. Ao decorrer dos últimos 40 anos essa lei sofreu uma série de intervenções no seu texto original, hora beneficiando ruralistas ora aplaudida por ambientalistas. 

Um estudo Coordenado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) apontam para algumas falhas do projeto e como está sendo apresentado não é benefício nem para o meio ambiente e nem para a produção rural e menos ainda para o povo brasileiro. A pesquisa aponta que a proposta de redução das áreas de reserva legal, contida no substitutivo, ampliaria os riscos de extinção de espécies, além de comprometer os serviços ambientais obtidos a partir dessas porções de terra preservadas. A proposta contida no relatório apoiado pelos ruralistas, que prevê a diminuição das áreas de preservação permanente (APPs) às margens de rios e em topos de morro, “representaria grande perda de proteção para áreas sensíveis”, segundo o documento divulgado pelos cientistas. 

 O estudo foi resultado de 10 meses de trabalho de cientistas, professores e pesquisadores de instituições como SBPC, ABC, Inpe, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e diversas universidades.
O projeto do deputado federal Aldo Rebelo é uma tentativa, tida para muitos como bem intencionada, de acabar com a vigência de uma série de legislações introduzidas no texto original de 1965. Todavia, o projeto, em fase de discussão e indo para a votação na Câmara Federal, não foi contemplado pelo povo brasileiro. Minha opinião como cidadão brasileiro e como pesquisador no campo da história ambiental e que esse projeto não deve ser votado enquanto o Governo Federal não fizer, por decreto lei, o Zoneamento-Econômico-ecológico. [1] E antes ainda da população brasileira, após ser apresentado todos os dados, ser ouvida por um referendo.

É óbvia a necessidade de que, antes de preservar, ou, conservar ecologicamente o território do Brasil, há que se conhecer, através do Zoneamento, as áreas que poderão, ou, não, serem preservadas, ou, conservadas. Para não se estancar o aproveitamento econômico das partes férteis do território brasileiro. 

Enquanto a bancada governista, representado pela ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, e pelo ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Wagner Rossi, busca a construção de um consenso e tentam um acordo entre as partes, o povo brasileiro permanece letárgico e lançado à morosidade. Fico a torcer para que prevaleça o bom senso embasado em dados científicos e para que a povo brasileiro assista o destino de nossas florestas.  Só assim há de se edificar um caminho sustentável propriamente dito.

 Nota:
[1] O Zoneamento Econômico Ecológico é um instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente, de âmbito territorial, que subsidia o governo com bases técnicas para definir os diversos usos do território, de forma a promover o desenvolvimento sustentável e ordenado, combinando crescimento econômico com equilíbrio ambiental. O ZEE orienta os planos de ordenamento territorial, que definem, por exemplo, que atividade (agricultura, indústria etc.). 

Bibliografias Consultadas:
AHRENS, Sergio. O novo Código Florestal Brasileiro. Acesso em 02 de maio de 11.

O Potencial da RIO+20

Por Jean-Pierre Leroy

O Rio de Janeiro sediará em Junho de 2012 um evento que poderá simbolizar o encerramento de um ciclo e o início de outro. Por ocasião da RIO+20, espera-se que seja feito um balanço abrangente do ciclo de conferências das Nações Unidas dos anos 90, iniciado com a RIO-92 e que incluiu conferências sobre população, direitos humanos, mulheres, desenvolvimento social e a agenda urbana. Também em 2012, o Protocolo de Kyoto terá chegado ao seu limite de vigência.

A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (RIO+20) se propõe a debater três questões: avaliação do cumprimento dos compromissos acordados na RIO-92, economia verde e arquitetura institucional para o desenvolvimento sustentável. A RIO+20, portanto, tem o potencial de ser um momento ao mesmo tempo de balanço das conquistas e derrotas das últimas duas décadas e também de identificação de uma nova pauta de lutas à frente.

O Contexto da RIO+20: fragilidade do sistema da ONU num cenário de múltiplas crises

Os seres humanos e o Planeta estão vivenciando múltiplas crises que põem em questão o futuro da humanidade. Nem as Nações Unidas, nem os governos, aprisionados ao passado, estão agindo em consonância com a gravidade do processo de deterioração acelerada em curso. As organizações da sociedade civil global, que vêm se reunindo de forma autônoma em espaços como o Fórum Social Mundial e nos processos e lutas permanentes que ligam o local e o global, em eventos paralelos às conferências das Nações Unidas, às reuniões do G-20 e das instituições financeiras multilaterais, e que se reunirão no Rio de Janeiro durante a Conferência RIO+20, estão desafiadas a revigorar e a continuar a luta por outro mundo e pressionar os governos e as instituições do sistema internacional a atuarem de forma efetiva. A constituição desse movimento global se intensificou a partir do Fórum Global, em particular do Fórum Internacional das ONGs, realizado paralelamente à RIO-92, e, em 2012, a avaliação do estado das lutas e conquistas globais também estará em pauta. A Conferência realizada em Johanesburgo pelo aniversário de dez anos da RIO-92, as Conferências das Partes (COP), a insignificância do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), e a impotência da ONU em fazer face às catástrofes humanitárias mostram a incapacidade do atual sistema internacional para enfrentar os desafios que o futuro impõe e para fazer cumprir os acordos do ciclo de conferências desde a RIO-92.

As COP encarregadas de implementar as decisões das Convenções sobre Biodiversidade, sobre Desertificação e sobre Mudanças Climáticas demonstram essa afirmação. A biodiversidade é associada historicamente aos povos indígenas, às populações tradicionais e ao campesinato, mas apesar de um reconhecimento em tese do seu papel, eles estão sendo sistematicamente espoliados dos seus direitos, chegando mesmo a serem expulsos dos seus territórios. Cada vez mais, o enfrentamento da desertificação está aquém dos desafios que o tema apresenta, o mesmo ocorrendo em relação às migrações forçadas. E a crise climática, por sua vez, está sendo apropriada pelo mercado para gerar lucros. O balanço dos compromissos assumidos nas conferências de direitos humanos, mulheres, desenvolvimento social e hábitat também não deixam dúvidas sobre a distância entre declarações de compromissos e realidade.

Do desenvolvimento sustentável à economia verde: a reciclagem de um modelo insustentável


Numa contradição insanável, a Conferência RIO-92, ao mesmo tempo em que reconhecia a grave crise ambiental do Planeta – em particular no que diz respeito à biodiversidade e ao clima – e a responsabilidade dos países industrializados, afirmava a primazia da economia como motor do desenvolvimento, batizado então de “sustentável“. De maneira sob-reptícia, os governos presentes e a própria ONU reconheciam o poder da economia capitalista acima da política, ou melhor, como condutor da política. Consagraram o “desenvolvimento sustentável”, termo rapidamente apropriado pela economia dominante e assim esvaziado do seu potencial reformador.

Em substituição ao esvaziado termo desenvolvimento sustentável, a agenda da RIO+20 busca apresentar a “Economia Verde” como uma nova fase da economia capitalista. Através do mercado verde, um novo ambientalismo, fundado no “business verde”, propõe a associação entre novas tecnologias, soluções pelo mercado e apropriação privada do bem comum como solução para a crise planetária. Esta reciclagem das clássicas formas de funcionamento do capitalismo, de seus modos de acumulação e expropriação, constitui-se em um estelionato grave de conseqüências profundas. Dá um novo fôlego a um modelo inviável e oferece como utopia somente a tecnologia e a privatização. Impede tomar consciência da crise que enfrentamos e dos verdadeiros impasses que está vivendo a humanidade. Portanto, impede que novas utopias sejam formuladas e alternativas civilizacionais construídas.

Devemos questionar o que o desenvolvimento sustentável e a economia verde têm a contribuir para a proteção e a garantia dos direitos humanos. O mercado deixa a sua defesa aos governos e à ONU, que mantém a retórica dos direitos humanos, incluindo no seu campo o direito à água; mas, sem meios nem vontade política para implementá-los.

Voltam-se cada vez mais para intervenções humanitárias, que tendem a substituir a promoção dos direitos. Tendo poder apenas normativo, os compromissos acordados na esfera da ONU ficam soterrados pelo poder de sanção e retaliações de instituições como OMC, FMI e Banco Mundial. Diante da incapacidade da ONU, de um lado, e do poder das instituições multilaterais que servem aos interesses das corporações, do outro, o resultado é que governos e políticas públicas e democráticas perdem cada vez mais espaço para acordos e políticas que entregam nosso futuro à iniciativa privada e, na sua mais nova versão, à Economia Verde.

O mundo está subordinado à força hegemônica do capital. Este não tem outra visão de futuro do que a promessa de um desenvolvimento ilusório, porque predador do meio ambiente, violador dos direitos humanos e excludente de países e populações. A ideologia do desenvolvimento, entendido como crescimento econômico que alimenta a expansão de padrões insustentáveis de produção e consumo, penetrou profundamente no imaginário e na cultura de todas as classes sociais, no Norte e no Sul, orientando inclusive a ação de governos eleitos em países do Sul com o mandato de desencadearem transformações, mas que, no entanto, não conseguem construir uma nova correlação de forças capaz de alavancar mudanças e também não conseguem acumular reflexão e força política na direção de novos paradigmas.

Os Estados dominantes, ao longo de dois séculos, e com mais intensidade, nas últimas décadas, promoveram a globalização da economia. As guerras coloniais, a ocupação de territórios e a escravidão foram substituídas hoje por acordos bilaterais e instâncias multilaterais que cumprem o mesmo papel de submeter e subordinar os países do Sul ao seu poder. Assim, impuseram ao mundo um modelo, técnico e econômico, de produção e de consumo sustentado pela exploração do trabalho, a sobre-exploração dos recursos da natureza e a exploração de outros países.

Se a exploração humana e de países pode se perpetuar apesar dos gravíssimos conflitos resultando na exclusão, a exploração da natureza mostra seus limites e começa a afetar a reprodução do capital, direta e indiretamente, quando doenças, diminuição da qualidade de vida e catástrofes começam a levantar suspeitas e minar a base de sustentação do modelo.

A crise que emergiu em 2008, inicialmente no sistema financeiro, não deixa dúvidas quanto ao caráter profundo de suas raízes, que revela a quebra de legitimidade e de sustentação econômica, social, ambiental e política de reprodução do modelo vigente. A crise em curso deixa clara a perda de hegemonia do concerto do poder que se perpetua desde o fim da Segunda Guerra e das instituições internacionais que lhe dão sustentação econômica e política. A crise abre, portanto, brechas de disputa pela democratização do sistema internacional. As novas e instáveis coalizões entre países, não mais cristalizadas em divisões Norte-Sul, são sintomas de um cenário político global em movimento. A RIO+20 pode ser um importante momento de alavancagem de uma nova correlação de forças e de uma nova agenda global, oferecendo aos movimentos sociais, organizações populares, movimentos de povos tradicionais e originários, sindicatos, entidades da sociedade civil que refletem ou buscam expressar os anseios de amplos setores da população mundial, a oportunidade de renovar seu protesto e seu questionamento sobre aos rumos dados ao futuro do mundo pelas corporações, instituições e países dominantes, acompanhados pela grande maioria das elites políticas e econômicas, desenhar suas utopias e formular com maior consistência as alternativas que vislumbram.

A RIO+20 e a construção de alternativas

A RIO+20, como evento mundial, nos permite sair das nossas fronteiras; nos abrir à solidariedade universal, para além dos particularismos; buscar pontos comuns de observação, que nos desloquem e façam com que nos encontremos, de muitos lugares do mundo. Mas isso com a condição de que nossa referência esteja nos povos e populações marginalizados e excluídos, com as quais compartilhamos os anseios por uma sociedade cujo pilar de sustentação seja os direitos e a justiça social e ambiental.

Não temos todas as respostas, mas temos a responsabilidade de buscá-las, entre o desejável e o possível. Mas mesmo o possível não se realizará sem que seja portador de utopias que reatem os laços entre ser humano e natureza, no campo e na cidade. Ele exige, portanto, uma mudança completa dos paradigmas que definem a civilização ocidental. Querer outras formas de organização das sociedades do que os Estados-Nações, outras formas de democracia do que a democracia parlamentar, outras economias do que a economia capitalista, outra mundialização do que a do mercado, outras culturas do que a imposta pelos EUA. Escutá-los com atenção talvez nos ajude a encontrar os rumos do futuro e formular novas utopias que motivem a humanidade, em particular a juventude.

Desenvolvem-se através do Planeta centenas de milhares de alternativas que podem ser as sementes da construção de novas utopias:

- Milhões de camponeses, de sem-terra, de povos indígenas e outros grupos tradicionais resistem e lutam pela Reforma Agrária, pela agroecologia, pelo definitivo domínio de suas terras ancestrais. Apoiados por tecnologias apropriadas, eles podem garantir a soberania e segurança alimentar e nutricional do planeta e dar uma contribuição decisiva na manutenção da biodiversidade, das águas e na mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Eles apontam uma alternativa ao modelo de agricultura e pecuária dominante, que provoca a destruição dos ecossistemas e da biodiversidade, que contribuem fortemente para o Efeito Estufa e o envenenamento das águas, dos solos e das pessoas.

- Experiências de economia solidária e de fortalecimento de mercados locais contribuem para a redução do consumo de energia, encurtando os circuitos entre produção, distribuição e consumo, favorecendo as micro, pequenas e médias empresas, que fornecem empregos, em contraposição à circulação das mercadorias através do mundo e deslocalização permanente das empresas e avanços tecnológicos, que não reduzem o consumo de energia e de matérias primas e produzem desemprego.

- A lógica da economia não deve ser a do lucro, mas a de assegurar condições de vida digna para as populações. Fortalece-se uma economia solidária que combate a economia dominante excludente das pessoas. Nas cidades, nas roças e nas florestas do Sul do mundo, grande parte dos trabalhadores e das trabalhadoras se encontram na economia informal, esquecidos pela macroeconomia, e inventam uma microeconomia em parte sucedânea e concorrente da economia formal, em parte inovadora.

- Reconstituição de um tecido urbano descentralizado e interiorizado, novas políticas habitacionais e urbanísticas, de saneamento e de transporte coletivo. Estas propostas visam enfrentar o desequilíbrio dentro das cidades e metrópoles, que viraram plataformas de exportação cercadas por enormes aglomerações de pobreza e miséria, que somadas ao desequilíbrio na ocupação humana dos espaços nacionais e regionais, fazem dessas cidades, e dentro delas, das camadas populares, as primeiras vítimas das mudanças climáticas.

A construção de alternativas e a arquitetura institucional

A escala global dos poderes impede o avanço da emancipação humana nos termos da idealidade inscrita nos pactos e convenções internacionais. Portanto, avançar nessas alternativas e em outras supõe disputar e questionar os paradigmas das instituições e atores internacionais que dão suporte ao atual modelo. Isso não quer dizer que acreditamos numa mudança brusca e radical na economia mundial. Deve-se pensar necessariamente em convivência, em transição no médio e longo prazo. Essa transição se fará menos pela reforma interna das instâncias atuais de intervenção na economia, que pretenderia reorientar suas estratégias, seus métodos e suas prioridades, e mais pela construção de novos espaços, de instituições novas que não sejam viciadas pelo seu passado, mas abertas para uma nova correlação de forças e novas agendas. As instâncias atuais continuarão a ser questionadas a agir e até a se reformarem, mas há que se esperar que elas percam progressivamente a sua importância, quando e porque ao seu lado será criado algo radicalmente novo que crescerá econômica e politicamente como contrapeso.

Para que tal ocorra é preciso olharmos para o processo rumo à RIO+20 como uma oportunidade para investirmos no acúmulo de forças, na base da sociedade, que seja capaz de disputar uma nova hegemonia. Após o ciclo de ascensão dos movimentos contra-hegemônicos iniciado em Seattle e ampliado com o Fórum Social Mundial, e o relativo descenso que as mobilizações de massa experimentaram nos últimos anos, a RIO+20 se coloca como possibilidade de rearticulação e alavancagem de uma iniciativa política no plano global.

É esta visão que orienta e delimita nossa vontade de participação no processo que nos levará a RIO+20. Baseados nela, nos unimos ao apelo da convocatória do grupo facilitador brasileiro criado por um conjunto de coletivos resumido nesta frase: "Cabe a sociedade civil organizada chamar a atenção mundial sobre a gravidade do impasse vivido pela humanidade, e sobre a impossibilidade do sistema econômico, político e cultural dominante apontar e conduzir saídas para a crise. Mas é também da sua responsabilidade afirmar e mostrar outros caminhos possíveis”.

Jean-Pierre Leroy é:

Educador, assessor da Área de Meio Ambiente e Desenvolvimento da FASE -Solidariedade e Educação e membro da Coordenação do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento.

FONTE: techoje

domingo, 1 de maio de 2011

História indígena e história ambiental


Por Victor Leonardi

Hoje em dia, é muito comum ouvirmos falar dos graves problemas ambientais, ou até mesmo convivermos com eles. São gigantescos incêndios florestais, desmatamento indiscriminado, uso abusivo de agrotóxicos nas plantações – contaminando agricultores e consumidores dos alimentos -, poluição dos rios por mercúrio e outros dejetos etc.

Nas cidades, os automóveis e as chaminés das fábricas expelem gases que tornam o ar irrespirável. O acúmulo de lixo, muitas vezes tóxico, e a falta de condições sanitárias ideais reduzem a qualidade de vida dos moradores.

Como a consciência das questões ecológicas aumentou muito nas últimas décadas, tem-se a impressão de que a gravidade desses problemas é coisa recente. Na verdade, o que há mesmo de recente é a amplitude global que eles alcançaram. O desmatamento das florestas e a poluição do ar, da terra, dos rios e dos mares tem sido tão intensa, em todo o mundo, que hoje o planeta inteiro está ameaçado.

Mas a destruição do meio ambiente é um problema muito antigo, que atingiu diferentes sociedades desde épocas remotas. No Brasil, em particular, o uso indiscriminado dos recursos naturais pode ser registrado desde o primeiro século da colonização.

Há um ramo da pesquisa histórica, denominado ‘história ambiental’, que se dedica a estudar as crises ambientais do passado. Mais do que registrar apenas essas destruições, a história ambiental procura entender a maneira pela qual as diferentes sociedades, em diferentes épocas, se relacionaram com a natureza.

Os conhecimentos produzidos por outros ramos do saber, como a antropologia, ajudam os historiadores ambientais a constatar que outras sociedades mantiveram uma relação muito mais harmônica, equilibrada e respeitosa com o mundo natural do que as sociedades do Ocidente.

Conhecimentos indígenas de agricultura e botânica

Pesquisas recentes na Amazônia e no Centro-Oeste já revelaram que a literatura tradicional a respeito da agricultura indígena estava equivocada. Segundo as ideias aceitas até há bem pouco tempo, o fogo teria sido a única forma de manejo da terra utilizada pelos índios até a chegada dos europeus. Mas, na opinião de alguns pesquisadores, essas ideias são errôneas. Pesquisa realizada na aldeia de Gorotire, em 1985, revelou que os kayapó praticavam até o reflorestamento, a partir de uma concepção do meio ambiente distinta daquela que predomina nas sociedades ocidentais.

Os pesquisadores apresentaram aos atuais habitantes diversas amostras botânicas, perguntando seu nome na língua indígena, seus usos e a prática de manejo associada àquelas plantas. Posteriormente, as amostras foram cientificamente identificadas pelo museu Emílio Goeldi, do Pará. Das 120 espécies inventariadas, os indígenas haviam considerado úteis 118, das quais 75 por cento eram espécies por eles plantadas!
Os estudiosos concluíram que esse sistema harmonioso de manejo do cerrado, com benefícios substanciais não só para o homem, mas para o próprio meio, se desenvolveu ao longo de muito tempo, tendo sido amplamente praticado no passado.

Os estudos de etnobotânica levaram à surpreendente conclusão de que muitos dos ecossistemas tropicais que consideramos naturais podem ter sido, na verdade, organizados por povos indígenas.

Outro exemplo interessante se relaciona com a apicultura. Em um congresso científico realizado no estado do Pará, alguns indígenas convidados deram uma verdadeira aula para os acadêmicos presentes, transmitindo seus vastos conhecimentos a respeito das abelhas, principalmente no que se refere a espécies amazônicas, ainda pouco estudadas por zoólogos e biólogos.

Esses cuidados para com a natureza, por parte dos kayapó e de outros povos indígenas, contrasta com a atividade daninha e devastadora de muitos empreendimentos contemporâneos na Amazônia, tanto na mineração como na pecuária.

Parece que a destruição do meio ambiente é uma das poucas tradições que podemos inventariar na história do Brasil, sem interrupções, desde o século 16.

No primeiro século da colonização, a exploração do pau-brasil foi tão intensa que, depois de bem pouco tempo, a madeira já rareava no litoral e era preciso ir procurá-la no interior, a 60 ou 120 quilômetros da costa.

Na verdade, os problemas ambientais vêm se acumulando no Brasil há dois ou três séculos. Por exemplo: há registros de uso indiscriminado de queimadas, acúmulo de detritos pela exploração mineral e poluição dos cursos d’água por mercúrio desde o século 18.

Acredita-se mesmo que poderia haver uma correlação entre a poluição por mercúrio e a grande incidência atual de debilidade mental e má formação congênita na população de certas cidades do interior de Goiás, nas quais a mineração foi intensa no final do século 18. Os casamentos consangüíneos, por si só, não explicariam tamanha incidência.

Essa hipótese foi levantada a partir da prospecção realizada na região, em 1987, por arqueólogos da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, revelando a existência de altíssima concentração de mercúrio nos sedimentos dos garimpes, soterrados há mais de século e meio.

Modelos agrícolas e espaço geográfico

Analisando os resultados da atual política governamental de incentivos fiscais na Amazônia, o engenheiro florestal Shigeo Dói concluiu que 97 por cento dos projetos agropecuários fracassaram, deixando como resultado desse ‘antimodelo’ de desenvolvimento econômico “40 milhões de hectares de floresta devastados, sem nenhum benefício em troca”. A devastação tornou-se tradição no Brasil, unindo o século do pau-brasil ao final do século 20.

O mais interessante no estudo desse engenheiro florestal é sua conclusão, de que “observando a roça dos silvícolas, que utilizam o método natural, o resultado é fantástico”. Ele propõe então a substituição do atual modelo agressivo, que canaliza recursos para a destruição, por um modelo conservacionista, direcionado para a oferta de produtos tropicais nativos, que poderia ser viabilizado, segundo ele, por um sistema de “fazendas florestais”.

Não cabe aqui analisar a viabilidade dessa proposta; fica apenas constatada a valorização das técnicas agrícolas dos homens ‘primitivos’ – cujos conhecimentos até hoje os estadistas brasileiros subestimam – por um engenheiro florestal.

Algumas descobertas arqueológicas feitas na Amazônia tornam ainda mais questionável essa ideia de primitivismo. Os pesquisadores constataram, por exemplo, que a agricultura indígena no alto Amazonas era quase sempre acompanhada por um processo de transformação manufatureira de produtos da terra – como a mandioca, com a qual se fabricava farinha, em grandes fornos construídos especialmente para esse fim.

Por meio de datação com carbono 14, hoje podemos afirmar com certeza que os fornos de farinha existiam e eram utilizados no norte do Brasil há pelo menos 2 mil anos. Portanto, embora também se dedicassem à caça, as populações indígenas da época não podiam ser descritas, conforme faziam observadores menos atentos, como “hordas de caçadores selvagens”.

Entre os traços culturais do ameríndio brasileiro merecem destaque os conhecimentos topográficos, isto é, a capacidade de se localizar e de representar o espaço percorrido. E, como conseqüência, a cultura geográfica inerente a essas faculdades.

Os tupinambá, por exemplo, além de conseguirem percorrer com facilidade centenas de léguas, eram dotados de um maravilhoso sentido de orientação, sendo os melhores guias, no sertão. Acompanhavam o giro do sol e seu caminho entre os dois trópicos, conheciam vários planetas, estrelas de primeira grandeza e constelações, que designavam por diferentes nomes, quase todos de animais. A essa astronomia de orientação correspondia, logicamente, uma aguda percepção do espaço geográfico e grande capacidade de representá-lo.

As múltiplas visões de mundo dos indígenas brasileiros, associadas a todo um complexo cultural, social e emocional, se desenvolveram ao longo de alguns milhares de anos, com total independência histórica em relação às tradições culturais européias e asiáticas.

As línguas e o ambiente

Os índios tukano do rio Uaupés, no Amazonas, dominam com perfeição numerosas línguas; são inúmeros os homens e mulheres que falam de três a cinco línguas, havendo até alguns poliglotas que dominam oito ou dez idiomas! Nesse aspecto, o rio Uaupés é uma área única no mundo. Esse rio fica no imenso município de São Gabriel da Cachoeira, que possui o maior número de aldeias indígenas do Brasil, abrigando povos de línguas tukano, maku, baré e baniwa.

Diante de um fato cultural tão extraordinário como o poliglotismo tukano, percebe-se como os preconceitos deformaram inúmeras teorias da história surgidas na modernidade.

É simplesmente um absurdo considerar ‘inferiores’, ou ‘atrasados’, homens e mulheres capazes de se expressar em diversos idiomas!

E não se pode esquecer que isso ocorre no interior do estado do Amazonas, onde a maior parte dos brasileiros não sabe falar outra língua além do português.
O utilitarismo imediatista e a procura constante da maximização, que predominam na mentalidade de mercado, reduzem a espécie humana ao Homo economicus. Se não fosse isso, nós, brasileiros, já teríamos percebido que temos muito a aprender com os povos indígenas que há milênios habitam essa imensa área que é a Amazônia e a região Centro-Oeste, território que mal começamos a estudar do ponto de vista botânico -e ecológico. Os conhecimentos empíricos desses povos não deveriam ser subestimados, como hoje acontece, por aqueles que sistematizam, explicam e teorizam.

Mas, como conseguir uma cooperação pacífica no estudo da natureza amazônica, quando essa mesma natureza vem sendo destruída a um ritmo cada vez maior?

A ocupação da Amazônia, desde o início da construção das grandes rodovias e ferrovias, de 1960 em diante, tem sido literalmente catastrófica do ponto de vista ecológico. Ao observar isso, vemos o quanto existe de chauvinismo por trás da palavra ‘atraso’. Se essa grande floresta continuar sendo destruída por tecnologias sofisticadas (há até usinas siderúrgicas utilizando carvão vegetal), só restará aos filósofos rever a noção de cultura, pois os índios ‘atrasados’ jamais ameaçaram a região, nos milhares de anos que vivem por ali.

A alternativa não seria uma volta às estratégias de sobrevivência do Neolítico, mas sim o fim do casamento tradicional entre ‘progresso’ e destruição. Ou entre destruição e cultura, tal como o Ocidente vem promovendo há mais de cinco séculos.

Uma tecnologia que se espalha destruindo a natureza, como vem acontecendo na Amazônia, não indica desenvolvimento de forças produtivas, mas sim de forças destrutivas.

Essas observações não têm apenas um sentido polêmico, ou um conteúdo de denúncia: fazem parte de nossa tentativa de compreender melhor a natureza das contradições presentes nessa sociedade.

Quando centenas de milhares de hectares de floresta – milhões de hectares, nos últimos anos – são queimados anualmente, para nada, a não ser por um lucro de curta duração, é mais do que necessário pensar no absurdo de empregar o termo ‘civilização’ para designar a extensão desse holocausto pelas áreas amazônicas.

FONTE: Originalmente publicado no Caderno da TV Escola 2 – A Idade do Brasil, editado pelo MEC em 1999


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A Terra estará a viver a sexta extinção em massa por causa das alterações do clima


Por Teresa Firmino

Qual vai ser o impacto das alterações climáticas na árvore da vida, no final do século XXI? Pela primeira vez, um artigo, publicado amanhã, quinta-feira, pela equipa do biólogo Miguel Araújo na revista Nature, avaliou os efeitos das alterações do clima na árvore da vida. A Terra pode estar a viver a sexta extinção em massa, desta vez pela mão humana, se não forem travadas as emissões de gases com efeito de estufa.

Já houve cinco momentos de desaparecimento maciço de biodiversidade, causados por fenómenos geológicos catastróficos — como a colisão de um asteróide com a Terra há 65 milhões de anos, que ficou famosa porque, entre os desaparecidos, estavam os dinossauros. Agora, devido às alterações do clima pela acção humana, há a tese de que a Terra estará a viver a sexta extinção em massa.

Mas uma vaga de desaparecimentos tem de cumprir quatro condições para ser uma extinção em massa, explica Miguel Araújo, coordenador do pólo na Universidade de Évora do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos: tem de ocorrer de forma generalizada em todo o mundo; num período de tempo geológico curto; envolver grandes quantidades de espécies; e afectar espécies de um leque vasto de grupos biológicos.

Por exemplo, se as extinções afectarem muitas espécies só de algumas partes da árvore da vida, as extinções serão dramáticas, com impacto nos ecossistemas, mas não será a sexta extinção em massa, diz Araújo, titular da cátedra Rui Nabeiro em Biodiversidade, a primeira criada em Portugal com fundos privados (cem mil euros anuais, por cinco anos).

À procura de resposta, a equipa do biólogo, que inclui Wilfried Thuiller, entre outros cientistas da Universidade Joseph Fourier, em França, reconstruiu as relações evolutivas de grande número de espécies de aves, mamíferos e plantas, estudando o caso da Europa. Nestas relações evolutivas, a equipa projectou depois as conclusões para o risco de extinção das espécies. Teve em conta quatro cenários de alterações climáticas, consoante estimativas distintas de emissões de gases de estufa, até 2080, e usando modelos que reproduzem o clima da Terra.

Para estudar como as alterações climáticas actuais poderiam afectar a evolução da árvore da vida, foi ainda necessário distinguir as extinções causadas pelas mudanças do clima das que ocorreriam ao acaso. Para tal, a equipa removeu aleatoriamente “ramos” exteriores da actual árvore da vida, para ver até que ponto as extinções modeladas na sequência das alterações climáticas seriam diferentes de aleatórias. “Se não diferisse — é o nosso resultado —, estaríamos perante um padrão de extinções não selectivo, que afectaria a totalidade da árvore”, explica Araújo, também do Museu Nacional de Ciências Naturais de Madrid. “As alterações climáticas previstas afectam os ramos da vida de forma uniforme, tornando-os menos densos e farfalhudos com o tempo”, diz.

“Outros estudos têm demonstrado que as ameaças humanas afectam determinados ramos concretos da árvore da vida, por exemplo espécies grandes, especializadas em determinados tipos de comida ou habitats, ou anfíbios”, diz. “O nosso artigo demonstra que as alterações climáticas terão tendência a afectar todos os ramos da árvore.”

O estudo não permite dizer, porém, qual o número de espécies que irá desaparecer. E a estes impactos há que juntar outros de origem humana, como a destruição de habitats, a caça e pesca excessivas, a propagação de espécies invasoras e de agentes patogénicos, que afectam mais uns troncos da árvore do que outros. “Como os impactos se adicionam uns aos outros, o futuro poderá reservar-nos um aumento generalizado de espécies ameaçadas que afectará quase todos os ramos da árvore da vida.”

Portanto, as alterações climáticas poderão alterar as contas actuais sobre a extinção das espécies. A Terra está então viver a sexta extinção em massa? “No caso de haver impactes de grande magnitude que afectem um grande número de espécies, o padrão de extinções modelado por nós assemelha-se ao que se esperaria numa extinção em massa, já que estas não afectaram ramos particulares da árvore da vida, mas a sua quase totalidade”, responde Miguel Araújo.

Perdas no Sul da Europa

Outra conclusão é que as espécies do Sul da Europa, que perde biodiversidade, deverão deslocar-se para o Norte. Já hoje, aliás, as alterações do clima estão a empurrar mais para norte espécies de aves e borboletas.

É também provável que espécies do Norte de África entrem no Sul da Europa — “o que já está a verificar-se com algumas aves e insectos”. Os recém-chegados tanto podem trazer mais biodiversidade, como acentuar a perda de espécies por competição ou novas doenças. “É difícil prever as consequências destas colonizações. Mas, havendo um mar entre os dois continentes, só espécies capazes de o atravessar podem colonizar a margem Norte, o que limita a diversidade de colonizadores.”